terça-feira, 12 de março de 2013

A RENÚNCIA DE BENTO XVI


A RENÚNCIA DE BENTO XVI

 

Teologia e Espiritualidade  não podia se furtar a abordar o fato mais surpreendente dos últimos séculos na vida da Igreja Católica Apostólica Romana – a renúncia do Papa Bento XVI.
Em primeiro lugar todos terão a oportunidade de ler a declaração que estarreceu a todos os cardeais que estavam presentes na reunião do Vaticano, uma vez que sobre ela muitos especialistas tecerão algumas considerações.
Apresentaremos a seguir um apanhado geral das Notícias do dia publicadas diariamente no sítio do IHU (Instituto Humanitas Unisinos), das quais selecionei os trechos que mais me chamaram a atenção dos artigos e das entrevistas de diversos especialistas (teólogos, filósofos, sociólogos, religiosos, jornalistas, etc...) a respeito da inesperada renúncia.
O material está um pouco extenso mas vale à pena ser lido. Leiam em doses homeopáticas... Ou tudo de uma vez! A decisão é de você, querido leitor!


DECLARAÇÃO DE RENÚNCIA DO PAPA BENTO XVI

Caríssimos Irmãos,

Convoquei-vos para este Consistório não só por causa das três canonizações, mas também para vos comunicar uma decisão de grande importância para a vida da Igreja. Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando.

Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela mão dos Cardeais em 19 de abril de 2005, pelo que, a partir de 28 de fevereiro de 2013, às 20,00 horas, a sede de Roma, a sede de São Pedro, ficará vacante e deverá ser convocado, por aqueles a quem tal compete, o Conclave para a eleição do novo Sumo Pontífice.

Caríssimos Irmãos,  verdadeiramente de coração vos agradeço por todo o amor e a fadiga com que carregastes comigo o peso do meu ministério, e peço perdão por todos os meus defeitos. Agora confiemos a Santa Igreja à solicitude do seu Pastor Supremo, Nosso Senhor Jesus Cristo, e peçamos a Maria, sua Mãe Santíssima, que assista, com a sua bondade materna, os Padres Cardeais na eleição do novo Sumo Pontífice. Pelo que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus.

Vaticano, 10 de Fevereiro de 2013.

Bento XVI

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Eis as notícias, artigos e entrevistas constantes do Sítio IHU que julguei merecedoras de destaque a respeito desse fato histórico.


RENÚNCIA SIMBOLIZA MODERNIDADE E LEVANTA INCÓGNITAS

Lisomar Silva, professora de Língua e Cultura Brasileiras na Universidade de Roma, em artigo publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, de 12-02-2013:

“A renúncia de Bento XVI coloca a igreja num contexto de absoluta modernidade e inúmeras incógnitas.
O gesto traz em si a modernidade do Papa Bento XVI e a coragem de Joseph Ratzinger:
Ø  a modernidade do papa que se retira e deixa ao sucessor a tarefa de conduzir a igreja rumo a horizontes desconhecidos;

Ø  a coragem do homem Ratzinger, um teólogo destinado a cumprir o percurso de ex-papa sem precedentes históricos.
Assim, se o Papa Bento XVI pode ser considerado moderno, o homem Joseph Ratzinger é certamente muito corajoso”.

UM PAPA PODE RENUNCIAR?

Thomas J. Reese, jesuíta norte-americano, membro sênior do Woodstock Theological Center, da Georgetown University e ex-diretor da revista América, dos jesuítas dos EUA. Artigo publicado no jornal National Catholic Reporter, 11-02-2013.

Sim, um papa pode renunciar – até 10 papas na história podem ter renunciado, mas as provas históricas são limitadas.
 Papas mais modernos  sentiram que a renúncia é inaceitável. Como disse Paulo VI, a paternidade não pode ser renunciada. Além disso, Paulo VI temia criar um precedente que poderia incentivar facções na Igreja a pressionar futuros papas a renunciar por outras razões que não a saúde.
O Código de Direito Canônico de 1917 previa a renúncia de um papa, assim como os regulamentos estabelecidos por Paulo VI em 1975 e por João Paulo II em 1996. No entanto, uma renúncia induzida por medo ou fraude seria inválida.
Em “Luz do Mundo.O papa, a Igreja, os sinais dos tempos. Uma conversa do Santo Padre Bento XVI com Peter Seevald”, um livro entrevista,  o Papa Bento XVI respondeu de forma inequívoca a uma pergunta se um papa pode renunciar:
“Sim. Quando um papa chega à clara consciência de já não se encontrar em condições físicas, mentais e espirituais de exercer o encargo que lhe foi confiado, então tem o direito – e, em algumas circunstâncias, também o dever – de renunciar”.


É UM FATO TÃO NOVO QUE PODE MUDAR MUITO A IGREJA

Juan Arias, escritor e jornalista espanhol, acompanhou o Concílio Vaticano II, na década de 1960, e passou 14 anos em Roma pelo jornal El País,em entrevista publicada pelo jornal O Estado de São Paulo, 12-02-2013.

É um fato histórico. O primeiro papa que renuncia na normalidade do papado é este. A renúncia de Bento XVI é um fato tão novo e tão revolucionário que pode mudar muita coisa na Igreja.
Em primeiro lugar, cai o tabu de que o papa tem que ser papa até o fim. Na sucessão, seguramente haverá muita influência de Bento XVI. Será a primeira vez na história que se vai nomear um papa com o outro ainda vivo. Que influência ele terá no conclave? Não temos como saber, porque é inédito.
Ele é o papa mais conservador destes últimos tempos. Foi um grande inquisidor, acabou com a Teologia da Libertação e - justo ele faz o gesto mais progressista da história da Igreja.Em primeiro lugar, ele é um grande político. Tão político que fez tudo no conclave anterior para ser eleito. Não sei até que ponto renunciou a sua face política com esse gesto.
As questões de saúde não são motivo suficiente para a renúncia. O papa João Paulo II estava muito pior e não renunciou. Pode ser alguma outra coisa. Parece que esses escândalos relacionados ao mordomo (Paolo Gabriele, mordomo de Bento XVI que foi julgado e condenado pela acusação de vazar documentos confidenciais do Vaticano) estariam relacionados à conspiração de um grupo dentro da Cúria Romana, preparando já um sucessor. Eles querem a volta de um papa italiano. Pode ser que Bento XVI quisesse desmascarar isso.
                                                                      
                                                        QUEBRA DE PARADIGMA 


Luiz Carlos Susin, frei e teólogo, em artigo publicado no jornal Zero Hora, 12-02-2103.

A notícia da renúncia do Papa Bento XVI “rompe um sólido paradigma: nos dois mil anos de história da Igreja Católica, temos notícias de apenas três papas, entre os mais de 260 oficialmente considerados papas, que renunciaram ao papado, por diferentes motivos, e alguns foram depostos, por motivos políticos ou doutrinais. Mas apenas uma renúncia, a de Celestino V, no final do século 13, está claramente documentada.
 
Nenhum papa, nos tempos modernos renunciou. E isso rompe um paradigma imaginário que temos a respeito do papa. Até agora, seguia-se a sucessão na forma do absolutismo monárquico. Seguia-se um ritual ao estilo “rei morto, rei posto”. Ou seja, vale também o contrário: só se põe novo rei quando o rei anterior está morto.
Agora teremos um conclave de eleição com o papa cessante ainda vivo! Que passa a ser “Papa Emérito”, seguindo o modelo dos bispos, que, a partir do Concílio Vaticano II,  apresentam sua renúncia aos 75 anos. Será o primeiro papa com tal título na história da Igreja.
Bento XVI, por própria iniciativa rompe um modelo que parecia sólido como os séculos da Igreja. No futuro, nada mais será como antes.
Se o Papa, nos últimos tempos, parecia condescender cada vez mais com certa onda de tradicionalismo que toma a Igreja, [...] agora ele se supera e se reinventa a si mesmo. [...] Ele será lembrado no futuro, sobretudo, por este gesto de renúncia. E por ter sido não um papa “reinante”, mas um papa “ensinante”
O gesto de sua renúncia muda para sempre o imaginário a respeito do papa: cada papa terá não muito longe de si um “Papa Emérito” e provavelmente presidirá o seu funeral. O papa fica mais humano. Poderá ser visto melhor como um serviço de presidência e um pastor que passa o cajado adiante na hora adequada.

ATITUDE MERECE TODA ADMIRAÇÃO E RESPEITO

Leonardo Boff, ex-integrante da ordem franciscana e um dos expoentes da Teologia da Libertação no Brasil, teólogo e professor universitário, em reportagem publicada pela Agência Brasil, em 11-02-2013.

Para Boff, apesar de serem a mesma pessoa, Joseph Ratzinger e o Papa Bento XVI eram duas personalidades diferentes.
Uma coisa é o Ratzinger professor e acadêmico, que era extremamente gentil e inteligente, além de amigo dos estudantes. Outra coisa é o Bento XVI, que exerce função autoritária e centralizadora, sem misericórdia com homossexuais e adeptos da camisinha.
Boff define Ratzinger da fase pré-papal como um pastor e professor extremamente erudito e de fácil acesso. Era uma pessoa simples, que ao se tornar cardeal, mudou de comportamento e passou a assumir posições duras. Tratava com luvas de pelica os bispos conservadores e com dureza teólogos da libertação que seguiam os pobres.
Segundo Boff, dois aspectos caracterizam o Ratzinger da fase posterior.
1.   O confronto com a modernidade, no encontro com as culturas e com outras religiões.
Tinha a compreensão de que a Igreja Católica era a única porta-voz da verdade, e a única capaz de dar rumo a toda humanidade. Por isso teve dificuldades com muçulmanos e judeus.
2.   O acobertamento do crime de pedofilia - quando era cardeal ele pedia ao bispos que impedissem que padres pedófilos fossem levados aos tribunais civis
Na medida em que a imprensa mostrou que havia não apenas padres, mas também bispos e cardeais suspeitos da prática de pedofilia, o Vaticano teve de aceitar a realidade.
Ratzinger carrega essa marca de, quando cardeal, ter sido cúmplice desses crimes.
Na avaliação do ex-franciscano, outro ponto fraco da atuação de Bento XVI como maior líder da Igreja Católica foi o de levar um papado tradicional, voltado para dentro da Europa. O papa construiu uma igreja fortaleza, cercada de inimigos por todos os lados e contra os quais tinha de se defender.
Boff avalia que o projeto de Bento XVI era de uma reforma da igreja ao estilo do passado, voltada para dentro e tendo como objetivo político a reevangelização da Europa. Nós, fora de lá (da Europa), consideramos esse projeto como ineficaz e como opção pelos ricos. Projeto equivocado. Não é um papa que deixará marcas na história.
Boff diz ter recebido a notícia da renúncia com naturalidade. Não é de praxe um papa renunciar. Ele desmistificou a figura dos papas, que geralmente ficam no cargo até morrer. Provavelmente por entender o papado como um serviço. Essa atitude merece toda admiração e respeito.
Boff espera que elejam um papa mais aberto, até porque 52% dos católicos vivem no terceiro mundo e não mais na Europa.

O PAPA MENOS MODERNO FEZ A ESCOLHA MAIS MODERNA POSSÍVEL
Carl Berstein, repórter protagonista do escândalo Watergate, autor do livro Sua Santidade, dedicado ao Papa João Paulo II, junto com Marco Politi, vaticanista.
        Para Berstein, a renúncia do Papa foi a decisão mais moderna, tomada pelo menos moderno das últimas décadas. Um ato desse tipo não ocorria há 700 anos, mas o seu valor histórico dependerá mais do que o conclave irá decidir fazer agora, do que na renúncia em si mesma.
Para Bernstein o conclave anterior, que elegeu Joseph Ratinzer como Papa, não fez um grande serviço à Igreja, aos católicos e ao mundo inteiro. Ele escolheu uma pessoa muito avançada na idade, mas principalmente caracterizada por uma relação difícil com a modernidade.
Bento XVI escolheu seguir o rastro traçado por João Paulo II para todas as coisas menos populares e de menor sucesso do pontífice anterior:
Ø  no papel das mulheres na Igreja;

Ø  no modo como tentou encobrir o problema dos abusos sexuais cometidos pelos sacerdotes;

Ø  no plano da  comunicação, esse papa não conseguiu conciliar a teologia eterna do catolicismo com a realidade em rápida evolução do nosso mundo.
O resultado é uma igreja cada vez mais isolada como instituição.
Ao escolher renunciar muda a sua herança. Agora, o desafio está nas mãos do conclave que é dominado pelos homens escolhidos por João Paulo II e Bento XVI, mas tem a oportunidade de finalmente abrir a igreja ao mundo. A possibilidade oferece a uma grande instituição a oportunidade de se renovar e de se relançar.

RATZINGER É BRILHANTE COMO TEÓLOGO, MAS FRACASSOU COMO PAPA

Luiz Felipe Pondé, professor de Filosofia da PUC-SP, em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, 12-12-2013.

Joseph Ratzinger é um dos maiores teólogos vivos do cristianismo. Como Papa Bento XVI, fracassou.
Conservador, um tanto liberal no começo de sua carreira, Bento XVI iniciou seu papado com um projeto, já em curso quando era a eminência intelectual de João Paulo II, de pôr “medida” na herança do Concílio Vaticano II, verdadeira “revolução liberal” na Igreja Católica.
Já nos anos 80 atacava a teologia da libertação latino-americana por considerá-la certa quanto ao carisma profético bíblico de procurar justiça no mundo, mas errada quanto a assumir o marxismo como ferramenta de realização desta justiça.
Foi um duro crítico da ideia de que a igreja deva aceitar soluções modernas para problemas modernos. 
Nesse sentido, acabou por ser um papa acuado pelas demandas modernas feitas à Igreja e por uma incapacidade de pôr em marcha o clero que nunca aceitou plenamente seu perfil de intelectual alemão eurocêntrico.
Sua idéia de Igreja é a de um pequeno grupo coeso de crentes, fiéis ao conjunto de normas para a condução moral da vida dada pelos padres da hierarquia (Magistério da Igreja), distantes das modas moderninhas.
Quais seriam algumas dessas demandas modernas?
Desafios típicos do contemporâneo:
Ø  Diálogo de igual para igual com os outros credos religiosos

Ø  Casamento gay (homossexual)

Ø  Divórcio

Ø  Sacerdócio das mulheres

Ø  Fim do celibato obrigatório

Ø  Uso de contraceptivos para controle da natalidade

Ø  Aborto

Ø  Punição pública de padres, bispos, cardeais pedófilos (esses religiosos deviam ser julgados pela justiça comum)

Ø  Aceitação de avanços da medicina pré-natal como identificação de fetos sem cérebro e consequente aborto

Ø  Alinhamento político do clero com causas sociais e políticas do terceiro mundo 

Seu próprio clero ajudou no fracasso do seu papado, persistindo na “romanização da igreja”, isto é, na centralização das decisões relativas ao cotidiano da instituição na lenta burocracia do Vaticano com sua típica alienação européia, distante do caos do mundo real do Terceiro Mundo. O vaticano é muito europeu, inclusive em sua decadência como referência para o mundo do século XXI.
A Igreja tem hoje também um sério problema de formação de quadros. Antes era “um bom negócio” entrar para a Igreja; hoje quem o faz, salvo casos de grande vocação mística e espiritual ou de revolta contra as ditas injustiças do mundo, é muitas vezes gente sem muita opção de vida. Quando não, gente com desvios sexuais graves.
Os cursos de formação do clero são fracos, com professores mal formados e conteúdos vazios. Há exceções que confirmam a regra.
Enfim o papado de Bento XVI fracassou, em grande parte, em razão do fogo amigo: seu próprio clero.

CARDEAL DIZ QUE ESCANDALOS PODEM TER INFLUENCIADO A RENÚNCIA DE BENTO XVI

John Allen Jr. – conhecido vaticanista norte-americano, que acompanha as notícias pontifícias para o canal CNN e o jornal National Catholic Repor

Será que Bento XVI realmente renunciou só porque ele está velho e cansado, ou foi realmente por causa da crise dos abusos sexuais, da bagunça do Vatileaks e de vários outros colapsos ocorridos sob a sua supervisão?
Allen acha que não foi por uma coisa nem outra. Bento XVI pode não ter renunciado por causa dos escândalos de pedofilia ou por qualquer outra polêmica específica, mas é difícil acreditar que eles não tiveram um papel, ao menos como pano de fundo.
Desafia a realidade acreditar que as várias fontes de turbulência nos últimos sete anos não cobraram o seu preço e que elas ajudam a  explicar a fadiga que ele sente agora.
Bento XVI é um realista, e sem dúvida, reconhece que algo precisa ser corrigido na gestão interna do Vaticano. Sua renúncia sugere que, dada a sua idade e talvez o seu conjunto de habilidades, ele concluiu que não é o único que pode corrigi-la.
José Saraiva Martins, um membro veterano do Vaticano, de 80 anos, que não vai participar do conclave declarou que os escândalos dos últimos anos podem ter feito parte da razão pela qual Bento XVI chegou a essa decisão. É a primeira vez que um cardeal vaticano disse em voz alta o que o que quase todo mundo acredita: o papa não vive no vácuo, e se ele se encontra fraco, a longa lista de incêndios que ele se esforçou para apagar deve fazer parte da razão que explica isso.


    REFLEXÕES EM TORNO DA RENÚNCIA DE BENTO XVI 

Faustino Teixeira, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF.


Muito complexa a situação da Igreja Católica Romana. Lemos hoje, 13-02-2013, na Folha de São Paulo, em reportagem de Patrícia Brito, que o cardeal Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo (e que participará do próximo conclave) sublinhou que “dificilmente o papa que substituirá Bento XVI mudará a forma como a Igreja lida com temas considerados polêmicos” e “será difícil simplesmente dizer sim àquilo que é proposto pela sociedade ou pelos legisladores”. 

Essa é, infelizmente, a cantilena que sempre estamos a ouvir por parte de segmentos da hierarquia atual. Uma dificuldade impressionante de ousadia e profetismo.
Massimo Franco no jornal Corriere della Sera, avalia que o que assistimos hoje é o “sintoma extremo, final, irrevogável da crise de um sistema de governo e de uma forma de papado”. E fala da deriva de uma igreja-instituição que em poucos anos passou da condição de “mestra de vida” para “pecadora”,de “ponto de referência moral da opinião pública ocidental, a uma espécie de “acusada global”, agredida e pressionada por segmentos diversificados.
Clóvis Rossi, em sua coluna na Folha de São Paulo chega a falar de ”guerra civil no Vaticano”.
Gianni Vattimo, filósofo italiano, em seu blog, sublinha que a demissão era a única coisa que um papa poderia seriamente fazer. Ele acrescenta que se Jesus vivesse hoje entre os seus pseudo-seguidores “abandonaria imediatamente o Vaticano, e talvez retornasse à Palestina para estar junto aos perseguidos e expropriados daquele lugar, e não perderia mais seu tempo e alma, seguindo as vicissitudes da política italiana (...)”. Para Vattimo, a renúncia papal indica um distanciamento das “funcionalidades terrenas” e a necessidade de apontar, talvez, a “face anárquica e autenticamente sobrenatural do Evangelho”, abrindo a possibilidade para o cristianismo de se tornar novamente “uma escolha de vida possível para as pessoas de nosso tempo”.
Leonardo Boff fala também no último texto sobre a importância de retomada de um modelo dialogal para a igreja, de sintonia com o Vaticano II, Medellin e Puebla, de uma “igreja-aprendiz e aberta ao diálogo com todos”, de liberdade e criatividade.
    Hans Kung em seu recente livro – “A Igreja ainda tem salvação?”, indica a necessidade de um tratamento para a igreja, de uma “terapia ecumênica” que ajude a vencer a “osteoporose do sistema eclesiástico”. E coloca o dedo na ferida, ao falar da necessidade imperiosa de uma reforma da cúria romana à luz do evangelho. Uma reforma que deverá contemplar:
Ø  Humildade evangélica, com renúncia de todos os títulos honoríficos estranhos à Bíblia;

Ø  Simplicidade evangélica;

Ø  Fraternidade evangélica;

Ø  Liberdade evangélica.

Nesse delicado momento de preparação do conclave que escolherá o novo papa, os analistas chamam a atenção para os problemas internos da cúria romana, que também pressionaram a decisão da renúncia de Bento XVI. 
José Ignácio González Faus,  renomado teólogo espanhol, em entrevista publicada no O Globo de 14-02-2013, faz menção a  tais pressões. Ele sinaliza: “Não estranharia que a renúncia estivesse ligada a problemas com a Cúria”. O papa “já arrastava problemas com a Cúria desde que afastou do sacerdócio Marcial Maciel, acusado de abusos sexuais”.
Chama a atenção aquela oração proferida pelo então cardeal Ratzinger na cerimônia da sexta-feira santa em Roma, em comentário da IX estação da via sacra:

 
 

Quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio deveriam pertencer completamente a Ele! Quanta soberba, quanta auto-suficiência! ”Senhor, muitas vezes a vossa Igreja parece-nos uma barca que está para afundar, uma barca que mete água por todos os lados. E mesmo no vosso campo de trigo, vemos mais cizânia que trigo. O vestido e o rosto tão sujos da vossa Igreja horrorizam-nos. Mas somos nós mesmos que os sujamos! Somos nós mesmos que Vos traímos sempre, depois de todas as nossas grandes palavras, os nossos grandes gestos.”

Segundo González Faus, os intérpretes em avaliação feita na época, achavam que ele estivesse se referindo ‘a pedofilia na igreja, mas em verdade, os indícios apontam que poderia ser uma alusão à Cúria romana, essa  mesma cúria que terá voz ativa na eleição do próximo papa em 2013. 

O PROBLEMA NÃO É O PAPA... O PROBLEMA É O PAPADO      
José Maria Castillo, teólogo espanhol, autor de inúmeros livros, inclusive traduzidos para o português, em artigo publicado em seu blog Teologia sin Censura, 12-02-2013.

Entre os numerosos comentários, que logicamente a notícia da renúncia do papa Bento XVI está suscitando, sinto falta de uma reflexão que, ao meu ver, parece ser a mais importante, a mais urgente, a que mais pode (e deveria) influir no futuro da igreja e em sua possível influência para o bem deste mundo tão atormentado no qual vivemos.
Refiro-me à reflexão que distingue entre o que é e representa a pessoa do “papa”, por um lado, e o que é e representa a instituição do “papado”, por outro. (...) Ninguém colocará em dúvida que seja muito mais determinante se deter em pensar sobre o que representa, e o que deveria representar,  não este papa ou outro, mas aquilo que realmente é e faz a instituição  que, de fato, é o papado, da maneira como é organizada, como funciona, e como é administrada, independentemente de quem seja o papa que a presidiu ou que a pode presidir.
Ele pergunta:
É melhor para a Igreja que todo o poder para governar uma instituição, a qual pertence mais de 1,2 bilhão de seres humanos, esteja concentrado num só homem, sem mais limitações  a não ser as impostas pela própria crença desse homem, que ocupa o papado?
Da forma como está disposto no vigente Código de Direito Canônico, é assim que está pensado, legislado, e assim funciona o papado. Porque, entre outras coisas, o papa retira e nomeia os mais altos e mais baixos cargos da Cúria.  Retira e coloca cardeais, bispos e cargos eclesiásticos de toda índole. E faz tudo isto sem ter que dar explicações a ninguém, sem que ninguém possa lhe pedir responsabilidades.  Além do mais, tudo se mantém desta forma, independente de quem seja o papa reinante, da idade que possua, da saúde que goze ou padeça, de sua mentalidade, preferências e até de suas possíveis manias.
Há uma suposta constante intervenção na tomada de decisões do papa reinante, do Espírito Santo. Essa suposta intervenção não está demonstrada em nenhuma parte. Como também não está demonstrado nem há argumentos para provar, que o bispo de Roma, por mais que seja sucessor de Pedro, precise acumular todo o poder que o Papa e seus teólogos incondicionais garantem que acumula por vontade de Deus.
Em que lugar está dito isso? Em quais argumentos se baseia? O cardeal Yves Congar, o melhor conhecedor de toda essa história, com o qual a Igreja pôde contar no último século, deixou escrito em seu diário pessoal que tudo isso era uma manipulação organizada pelos interesses de Roma, cujas raízes chegam ao século segundo da história do cristianismo.
Em todo Novo Testamento, em nenhuma parte consta que a Igreja precise estar organizada desta forma e assim tenha que ser administrada. Em relação ao famoso texto de Mt 16,18-19, entre os melhores estudiosos do Evangelho de Mateus,a cada dia aumenta o número daqueles que afirmam que essas palavras não saíram da boca de Jesus. É um texto redacional, muito posterior ao texto original, acrescentado ao evangelho pelo último redator do texto que nos chegou.
A Igreja está, precisamente nestes dias, num momento privilegiado para enfrentar sem medo estas questões que apontam para problemas de fundo, que ela ainda não resolveu. Se não forem enfrentados e levados à sério, esta  Igreja continuará  perdida (e calada), por mais lúcido e mais valioso que seja o futuro papa. Porque, insisto, o problema da Igreja não é o papa, é o papado, da forma como está organizado e como funciona, independentemente de quem seja o homem que ocupa o trono papal.
 
O PASTOR E O PODER 

Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, em artigo de 12-02-13.

Um ato revolucionário a renúncia do papa.Qual é a natureza e quais serão as consequências dessa  revolução?
A natureza é evidente: a Igreja se laiciza. O papa até agora foi considerado dentro da Igreja e da comunidade dos fiéis como Vigário de Cristo na terra e, quando fala “ex cathedra” sobre as questões de fé a sua palavra é infalível, como decretou o Concílio Vaticano I de 1870.
Para a renúncia o cânone põe uma única condição: que o papa tome usa decisão em plena liberdade, isto é, que não pese sobre ela alguma sombra de pressão ou chantagem. A vontade de Cristo nem é citada, nem Ratzinger faz menção a ela nas breves palavras com as quais comunicou a sua decisão ao Consistório.
Portanto, diminui a relação direta entre o Chefe da Igreja e o Filho de Deus, e a autoridade do bispo de Roma sobre toda a cristandade não deriva de outra coisa que da eleição em conclave por parte dos cardeais, uma cerimônia totalmente laica, salvo o lugar em que ocorre (a capela Cistina),o perfume de incenso e o som dos sinos.
As consequências dessa secularização e laicização referem-se à distribuição dos poderes dentro da Igreja: paralelamente à diminuição do papel do papa, aumentará a dos concílios e dos sínodos, isto é, das assembléias dos bispos.
O pedido implícito  mas  evidente do Concílio Vaticano II era esse – o da colegialidade – as decisões  sendo compartilhadas entre o papa e os bispos do mundo inteiro. O que tem muita relevância, uma vez que os bispos estão muito mais interessados na pastoralidade do que no poder da hierarquia curial.
A igreja como instituição se fundamenta sobre duas autoridades: a do papa e a dos concílios e dos sínodos. O papa coordena e dirige essas assembléias dos bispos, mas as decisões são tomadas pelos bispos, que são os depositários do legado dos apóstolos de Jesus.
        A cúria, em teoria, deveria fornecer aos pastores os instrumentos e os meios materiais para evangelizar as almas e difundir o credo.
No entanto, por séculos e milênios, a Igreja-instituição sufocou a pastoralidade e  promoveu guerras, inquisições, corrupção, simonia. A instituição sempre lutou por obter poder temporal.
Com o fim do poder temporal (separação Estado-Igreja) a Igreja-instituição manteve a supremacia sobre a igreja militante e pastoral, recuperando o poder através da política e do fascínio do espetáculo.
O espetáculo teve sua estrela mais brilhante na figura do Papa Wojtyla enfrentando sofrimentos terríveis, até mesmo sua agonia e morte.

RENÚNCIA – MOMENTO PARA REPENSAR AS ESTRUTURAS DE GOVERNO E OS PRIVILÉGIOS MEDIEVAIS DA IGREJA CATÓLICA
Ivone Gebara, escritora, filósofa e teóloga, em artigo publicado por Adital, 13-02-2013.

Depois da louvável atitude do ancião Bento XVI renunciando ao governo da Igreja Católica Romana sucederam-se entrevistas com alguns bispos e sacerdotes nas rádios e televisões de todo o país.
No contexto das primeiras notícias, o que chamou minha atenção foi a forma como alguns padres entrevistados ou padres liderando uma programação televisiva, quando perguntados sobre quem seria o novo papa saíssem pela tangente. Apelavam para a inspiração ou vontade do Espírito Santo como aquele do qual dependia a escolha do novo pontífice romano. Nada de pensar em pessoas concretas para responder a situações mundiais desafiantes, nada de suscitar uma reflexão na comunidade, nada de falar dos problemas atuais da Igreja que a tem levado a um significativo marasmo, nada de ouvir os clamores da comunidade católica por uma democratização significativa das estruturas anacrônicas de sustentação da Igreja institucional.
O que se ouviu foi “ um discurso padrão trivial e abstrato bem conhecido, um discurso que continua fazendo apelo a forças ocultas e de certa forma confirmando seu próprio poder. A contínua referência ao Espírito Santo a partir de um misterioso modelo hierárquico é uma forma de camuflar os reais problemas da Igreja e uma forma de retórica religiosa para não desvendar os conflitos internos que a instituição tem vivido. A teologia do Espírito Santo continua para eles mágica expressando explicações que já não conseguem falar aos corações e às consciências de muitas que têm apreço pelo legado do Movimento de Jesus de Nazaré. É uma teologia que continua igualmente a provocar a passividade do povo crente frente às muitas dominações inclusive as religiosas.
Já é tempo de sairmos dessa linguagem metafísica abstrata como se um Deus iria se ocupar especialmente de eleger o novo papa prescindindo dos conflitos, desafios, iniqüidades e qualidades humanas. Já é tempo de enfrentarmos um cristianismo que admita o conflito das vontades humanas e que no final de um processo eletivo, nem sempre a escolha feita pode ser considerada a melhor para o conjunto.
A eleição de um novo papa é algo que tem a ver com o conjunto das comunidades católicas espalhadas pelo mundo e não apenas com uma elite idosa minoritária e masculina. Por isso é preciso ir mais além de um discurso justificativo do poder papal e enfrentar-se os problemas e desafios reais que estamos vivendo.
Preocupa-me que não se discuta de forma mais aberta o fato de que o governo da Igreja institucional ser entregue a pessoas idosas que apesar de suas qualidades e sabedoria já não conseguem mais enfrentar com vigor e desenvoltura os desafios que estas funções representam. Até quando a gerontologia masculina papal será o doublé da imagem de um Deus branco, idoso e de barbas brancas? Haveria alguma possibilidade de abrir essas discussões nas comunidades cristãs populares que têm o direito à informação e à formação cristã mais ajustada aos nossos tempos? Não podemos continuar tratando o povo como ignorante e incapaz de perguntas inteligentes e astutas em relação à igreja.
Os religiosos mantém essa situação muitas vezes cômoda por ignorância ou por avidez de poder. Afirmar a interferência divina nas escolhas que a hierarquia da Igreja Católica faz, sem levar em consideração a vontade das comunidades cristãs espalhadas pelo mundo é um exemplo flagrante dessa situação.
É como se quisessem reafirmar erroneamente que a Igreja é em primeiro lugar o clero e as autoridades cardinalícias às quais é dado o poder de eleger o novo papa e que esta é a vontade de Deus. Aos milhares de fiéis cabe apenas rezar para que o Espírito Santo escolha o melhor. De maneira hábil sempre estão tentando fazer os fiéis escapar da história real, de sua responsabilidade coletiva e apelar para forças superiores que dirijam a história e a igreja.

Sabendo das muitas dificuldades enfrentadas pelo papa Bento XVI durante seu curto ministério papal, as empresas de comunicação católica apenas ressaltam suas qualidades, sua doação à igreja, sua inteligência teológica como se quisessem esconder os limites de sua personalidade e de sua postura política não apenas como pontífice, mas também por muitos anos, como presidente da Congregação da Doutrina da fé, o antigo Santo Ofício. Não permitem que as contradições humanas do homem Joseph Ratzinger apareçam e que sua intransigência legalista e o tratamento punitivo que caracterizaram sua pessoa sejam lembrados.

As estruturas pré-modernas que ainda mantém esse poder religioso precisam ser confrontadas com os anseios democráticos de nossos povos na busca de novas formas de organização que se coadunem melhor com os tempos e grupos plurais de hoje. Precisam ser confrontadas com as lutas das mulheres, das minorias e maiorias raciais, de pessoas de diferentes orientações sexuais e escolhas, de pensadores, de cientistas, de trabalhadores das mais distintas profissões. Precisam ser retrabalhadas na linha de um diálogo maior e mais profícuo com outros credos religiosos e sabedorias espalhadas pelo mundo.

O Espírito Santo não pode ser mais usado para justificar e manter estruturas privilegiadas de poder e tradições mais antigas ou medievais como se fossem uma lei ou uma norma indiscutível e imutável.

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