A
RENÚNCIA DE BENTO XVI
Em
primeiro lugar todos terão a oportunidade de ler a declaração que estarreceu a
todos os cardeais que estavam presentes na reunião do Vaticano, uma vez que
sobre ela muitos especialistas tecerão algumas considerações.
Apresentaremos
a seguir um apanhado geral das Notícias do dia publicadas diariamente no sítio
do IHU (Instituto Humanitas Unisinos), das quais selecionei os trechos que mais
me chamaram a atenção dos artigos e das entrevistas de diversos especialistas
(teólogos, filósofos, sociólogos, religiosos, jornalistas, etc...) a respeito
da inesperada renúncia.
O material está um pouco extenso mas vale à pena ser lido. Leiam em doses homeopáticas... Ou tudo de uma vez! A decisão é de você, querido leitor!
DECLARAÇÃO
DE RENÚNCIA DO PAPA BENTO XVI
Caríssimos Irmãos,
Convoquei-vos
para este Consistório não só por causa das três canonizações, mas também para
vos comunicar uma decisão de grande
importância para a vida da Igreja. Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei
à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas
para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que
este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as
obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando.
Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas
mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé,
para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também
o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi
diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para
administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste ato, com
plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela
mão dos Cardeais em 19 de abril de 2005, pelo que, a partir de 28 de fevereiro
de 2013, às 20,00 horas, a sede de Roma, a sede de São Pedro, ficará vacante e
deverá ser convocado, por aqueles a quem tal compete, o Conclave para a eleição
do novo Sumo Pontífice.
Caríssimos
Irmãos, verdadeiramente de coração vos
agradeço por todo o amor e a fadiga com que carregastes comigo o peso do meu
ministério, e peço perdão por todos os meus defeitos. Agora confiemos a Santa
Igreja à solicitude do seu Pastor Supremo, Nosso Senhor Jesus Cristo, e peçamos
a Maria, sua Mãe Santíssima, que
assista, com a sua bondade materna, os Padres Cardeais na eleição do novo Sumo
Pontífice. Pelo que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de
todo o coração, com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus.
Vaticano, 10 de
Fevereiro de 2013.
Bento XVI
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Eis as notícias, artigos e entrevistas
constantes do Sítio IHU que julguei merecedoras de destaque a respeito desse
fato histórico.
RENÚNCIA
SIMBOLIZA MODERNIDADE E LEVANTA INCÓGNITAS
Lisomar
Silva, professora de Língua e Cultura Brasileiras na
Universidade de Roma, em artigo publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, de
12-02-2013:
“A renúncia de Bento XVI coloca a
igreja num contexto de absoluta modernidade e inúmeras incógnitas.
O
gesto traz em si a modernidade do Papa Bento XVI e a coragem de Joseph
Ratzinger:
Ø a
modernidade do papa que se retira e deixa ao sucessor a tarefa de conduzir a
igreja rumo a horizontes desconhecidos;
Ø a
coragem do homem Ratzinger, um teólogo destinado a cumprir o percurso de
ex-papa sem precedentes históricos.
Assim,
se o Papa Bento XVI pode ser considerado moderno, o homem Joseph Ratzinger é
certamente muito corajoso”.
UM PAPA PODE
RENUNCIAR?
Thomas
J. Reese, jesuíta norte-americano, membro sênior do Woodstock
Theological Center, da Georgetown University e ex-diretor da revista América,
dos jesuítas dos EUA. Artigo publicado no jornal National Catholic Reporter,
11-02-2013.
Sim,
um papa pode renunciar – até 10 papas na história podem ter renunciado, mas as
provas históricas são limitadas.
Papas mais modernos sentiram que a renúncia é inaceitável. Como
disse Paulo VI, a paternidade não pode ser renunciada. Além disso, Paulo VI
temia criar um precedente que poderia incentivar facções na Igreja a pressionar
futuros papas a renunciar por outras razões que não a saúde.
O Código de Direito Canônico de 1917
previa a renúncia de um papa, assim como os regulamentos estabelecidos por
Paulo VI em 1975 e por João Paulo II em 1996. No entanto, uma renúncia
induzida por medo ou fraude seria inválida.
Em
“Luz do Mundo.O papa, a Igreja, os sinais
dos tempos. Uma conversa do Santo Padre Bento XVI com Peter Seevald”, um
livro entrevista, o Papa Bento XVI
respondeu de forma inequívoca a uma pergunta se um papa pode renunciar:
“Sim.
Quando um papa chega à clara consciência de já não se encontrar em condições
físicas, mentais e espirituais de exercer o encargo que lhe foi confiado, então
tem o direito – e, em algumas circunstâncias, também o dever – de renunciar”.
É UM FATO TÃO
NOVO QUE PODE MUDAR MUITO A IGREJA
Juan
Arias, escritor e jornalista espanhol, acompanhou o Concílio
Vaticano II, na década de 1960, e passou 14 anos em Roma pelo jornal El País,em
entrevista publicada pelo jornal O Estado de São Paulo, 12-02-2013.
“É um fato histórico. O primeiro papa
que renuncia na normalidade do papado é este. A renúncia de Bento XVI é um fato
tão novo e tão revolucionário que pode mudar muita coisa na Igreja.
Em
primeiro lugar, cai o tabu de que o papa
tem que ser papa até o fim. Na sucessão, seguramente haverá muita
influência de Bento XVI. Será a primeira vez na história que se vai nomear um
papa com o outro ainda vivo. Que influência ele terá no conclave? Não temos
como saber, porque é inédito.
Ele é o papa mais conservador destes últimos tempos.
Foi um grande inquisidor, acabou com a Teologia da Libertação e - justo ele –
faz o gesto mais progressista da
história da Igreja.Em primeiro lugar, ele é um grande político. Tão
político que fez tudo no conclave anterior para ser eleito. Não sei até que
ponto renunciou a sua face política com esse gesto.
As questões de saúde não são motivo
suficiente para a renúncia. O papa João Paulo II estava muito
pior e não renunciou. Pode ser alguma outra coisa. Parece que esses escândalos
relacionados ao mordomo (Paolo Gabriele, mordomo de Bento XVI que foi julgado e
condenado pela acusação de vazar documentos confidenciais do Vaticano) estariam
relacionados à conspiração de um grupo
dentro da Cúria Romana, preparando já um sucessor. Eles querem a volta de um
papa italiano. Pode ser que Bento XVI quisesse desmascarar isso.
QUEBRA DE PARADIGMA
A
notícia da renúncia do Papa Bento XVI “rompe um sólido paradigma: nos dois mil
anos de história da Igreja Católica, temos notícias de apenas três papas, entre
os mais de 260 oficialmente considerados papas, que renunciaram ao papado, por
diferentes motivos, e alguns foram depostos, por motivos políticos ou
doutrinais. Mas apenas uma renúncia, a de Celestino V, no final do século 13,
está claramente documentada.
Nenhum
papa, nos tempos modernos renunciou. E isso rompe um paradigma imaginário que
temos a respeito do papa. Até agora, seguia-se a sucessão na forma do
absolutismo monárquico. Seguia-se um ritual ao estilo “rei morto, rei posto”.
Ou seja, vale também o contrário: só se põe novo rei quando o rei anterior está
morto.
Agora
teremos um conclave de eleição com o papa cessante ainda vivo! Que passa a ser
“Papa Emérito”, seguindo o modelo dos bispos, que, a partir do Concílio
Vaticano II, apresentam sua renúncia aos
75 anos. Será o primeiro papa com tal título na história da Igreja.
Bento XVI, por própria iniciativa
rompe um modelo que parecia sólido como os séculos da Igreja. No futuro, nada
mais será como antes.
Se
o Papa, nos últimos tempos, parecia condescender cada vez mais com certa onda
de tradicionalismo que toma a Igreja, [...] agora ele se supera e se reinventa
a si mesmo. [...] Ele será lembrado no
futuro, sobretudo, por este gesto de renúncia. E por ter sido não um papa
“reinante”, mas um papa “ensinante”
O
gesto de sua renúncia muda para sempre o imaginário a respeito do papa: cada
papa terá não muito longe de si um “Papa Emérito” e provavelmente presidirá o
seu funeral. O papa fica mais humano.
Poderá ser visto melhor como um serviço de presidência e um pastor que passa o
cajado adiante na hora adequada.
ATITUDE MERECE
TODA ADMIRAÇÃO E RESPEITO
Leonardo
Boff, ex-integrante da ordem franciscana e um dos expoentes
da Teologia da Libertação no Brasil, teólogo e professor universitário, em
reportagem publicada pela Agência Brasil, em 11-02-2013.
Para
Boff, apesar de serem a mesma pessoa, Joseph Ratzinger e o Papa Bento XVI eram
duas personalidades diferentes.
Uma
coisa é o Ratzinger professor e acadêmico, que era extremamente gentil e
inteligente, além de amigo dos estudantes. Outra coisa é o Bento XVI, que exerce função autoritária e centralizadora, sem
misericórdia com homossexuais e adeptos da camisinha.
Boff
define Ratzinger da fase pré-papal como um pastor e professor extremamente
erudito e de fácil acesso. Era uma pessoa simples, que ao se tornar cardeal,
mudou de comportamento e passou a assumir posições duras. Tratava com luvas de pelica os bispos conservadores e com dureza
teólogos da libertação que seguiam os pobres.
Segundo
Boff, dois aspectos caracterizam o Ratzinger da fase posterior.
1.
O confronto com a modernidade, no encontro
com as culturas e com outras religiões.
Tinha
a compreensão de que a Igreja Católica era a única porta-voz da verdade, e a
única capaz de dar rumo a toda humanidade. Por isso teve dificuldades com
muçulmanos e judeus.
2.
O acobertamento do crime de pedofilia - quando
era cardeal ele pedia ao bispos que impedissem que padres pedófilos fossem
levados aos tribunais civis
Na
medida em que a imprensa mostrou que havia não apenas padres, mas também bispos
e cardeais suspeitos da prática de pedofilia, o Vaticano teve de aceitar a
realidade.
Ratzinger carrega essa marca de,
quando cardeal, ter sido cúmplice desses crimes.
Na
avaliação do ex-franciscano, outro ponto fraco da atuação de Bento XVI como
maior líder da Igreja Católica foi o de levar um papado tradicional, voltado para dentro da Europa. O papa construiu
uma igreja fortaleza, cercada de inimigos por todos os lados e contra os quais
tinha de se defender.
Boff
avalia que o projeto de Bento XVI era de
uma reforma da igreja ao estilo do passado, voltada para dentro e tendo como
objetivo político a reevangelização da Europa. Nós, fora de lá (da Europa),
consideramos esse projeto como ineficaz e como opção pelos ricos. Projeto
equivocado. Não é um papa que deixará marcas na história.
Boff
diz ter recebido a notícia da renúncia com naturalidade. Não é de praxe um papa
renunciar. Ele desmistificou a figura
dos papas, que geralmente ficam no cargo até morrer. Provavelmente por entender
o papado como um serviço. Essa atitude merece toda admiração e respeito.
Boff
espera que elejam um papa mais aberto, até porque 52% dos católicos vivem no
terceiro mundo e não mais na Europa.
O PAPA MENOS MODERNO FEZ A ESCOLHA MAIS MODERNA POSSÍVEL
Carl
Berstein, repórter protagonista do escândalo Watergate, autor do
livro Sua Santidade, dedicado ao Papa João Paulo II, junto com Marco Politi,
vaticanista.
Para Berstein, a
renúncia do Papa foi a decisão mais moderna, tomada pelo menos moderno das
últimas décadas. Um ato desse tipo não ocorria há 700 anos, mas o seu valor
histórico dependerá mais do que o conclave irá decidir fazer agora, do que na
renúncia em si mesma.
Para
Bernstein o conclave anterior, que elegeu Joseph Ratinzer como Papa, não fez um
grande serviço à Igreja, aos católicos e ao mundo inteiro. Ele escolheu uma
pessoa muito avançada na idade, mas principalmente caracterizada por uma relação difícil com a modernidade.
Bento
XVI escolheu seguir o rastro traçado por João Paulo II para todas as coisas
menos populares e de menor sucesso do pontífice anterior:
Ø no
papel das mulheres na Igreja;
Ø no
modo como tentou encobrir o problema dos abusos sexuais cometidos pelos
sacerdotes;
Ø no
plano da comunicação, esse papa não
conseguiu conciliar a teologia eterna do catolicismo com a realidade em rápida
evolução do nosso mundo.
O resultado é uma igreja cada vez mais
isolada como instituição.
Ao
escolher renunciar muda a sua herança. Agora, o desafio está nas mãos do
conclave que é dominado pelos homens escolhidos por João Paulo II e Bento
XVI, mas tem a oportunidade de finalmente abrir a igreja ao mundo. A possibilidade oferece a uma grande
instituição a oportunidade de se renovar e de se relançar.
RATZINGER É BRILHANTE COMO TEÓLOGO, MAS FRACASSOU COMO PAPA
Luiz
Felipe Pondé, professor de Filosofia da PUC-SP, em
artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, 12-12-2013.
Conservador,
um tanto liberal no começo de sua carreira, Bento XVI iniciou seu papado com um
projeto, já em curso quando era a eminência intelectual de João Paulo II, de
pôr “medida” na herança do Concílio Vaticano II, verdadeira “revolução liberal”
na Igreja Católica.
Já
nos anos 80 atacava a teologia da libertação latino-americana por considerá-la
certa quanto ao carisma profético bíblico de procurar justiça no mundo, mas errada
quanto a assumir o marxismo como ferramenta de realização desta justiça.
Foi um duro crítico da ideia de que a
igreja deva aceitar soluções modernas para problemas modernos.
Nesse
sentido, acabou por ser um papa acuado
pelas demandas modernas feitas à Igreja e por uma incapacidade de pôr em marcha
o clero que nunca aceitou plenamente seu perfil de intelectual alemão
eurocêntrico.
Sua
idéia de Igreja é a de um pequeno grupo coeso de crentes, fiéis ao conjunto de
normas para a condução moral da vida dada pelos padres da hierarquia
(Magistério da Igreja), distantes das modas moderninhas.
Quais seriam algumas dessas demandas
modernas?
Desafios
típicos do contemporâneo:
Ø Diálogo
de igual para igual com os outros credos religiosos
Ø Casamento
gay (homossexual)
Ø Divórcio
Ø Sacerdócio
das mulheres
Ø Fim
do celibato obrigatório
Ø Uso
de contraceptivos para controle da natalidade
Ø Aborto
Ø Punição
pública de padres, bispos, cardeais pedófilos (esses religiosos deviam ser
julgados pela justiça comum)
Ø Aceitação
de avanços da medicina pré-natal como identificação de fetos sem cérebro e
consequente aborto
Ø Alinhamento
político do clero com causas sociais e políticas do terceiro mundo
Seu próprio clero ajudou no fracasso
do seu papado, persistindo na “romanização da igreja”,
isto é, na centralização das decisões relativas ao cotidiano da instituição na
lenta burocracia do Vaticano com sua típica alienação européia, distante do
caos do mundo real do Terceiro Mundo. O vaticano é muito europeu, inclusive em
sua decadência como referência para o mundo do século XXI.
A Igreja tem hoje também um sério
problema de formação de quadros. Antes era “um bom negócio”
entrar para a Igreja; hoje quem o faz, salvo casos de grande vocação mística e
espiritual ou de revolta contra as ditas injustiças do mundo, é muitas vezes
gente sem muita opção de vida. Quando não, gente com desvios sexuais graves.
Os cursos de formação do clero são
fracos, com professores mal formados e conteúdos vazios. Há
exceções que confirmam a regra.
Enfim o papado de Bento XVI fracassou,
em grande parte, em razão do fogo amigo: seu próprio clero.
CARDEAL DIZ QUE ESCANDALOS PODEM TER INFLUENCIADO A RENÚNCIA DE
BENTO XVI
John
Allen Jr. – conhecido vaticanista norte-americano, que acompanha
as notícias pontifícias para o canal CNN e o jornal National Catholic
Repor
Será
que Bento XVI realmente renunciou só porque ele está velho e cansado, ou foi
realmente por causa da crise dos abusos sexuais, da bagunça do Vatileaks e de
vários outros colapsos ocorridos sob a sua supervisão?
Allen
acha que não foi por uma coisa nem outra. Bento XVI pode não ter renunciado por
causa dos escândalos de pedofilia ou por qualquer outra polêmica específica,
mas é difícil acreditar que eles não tiveram um papel, ao menos como pano de
fundo.
Desafia
a realidade acreditar que as várias fontes de turbulência nos últimos sete anos
não cobraram o seu preço e que elas ajudam a
explicar a fadiga que ele sente agora.
Bento
XVI é um realista, e sem dúvida, reconhece que algo precisa ser corrigido na
gestão interna do Vaticano. Sua renúncia sugere que, dada a sua idade e talvez
o seu conjunto de habilidades, ele concluiu que não é o único que pode
corrigi-la.
José Saraiva Martins,
um membro veterano do Vaticano, de 80 anos, que não vai participar do conclave
declarou que os escândalos dos últimos
anos podem ter feito parte da razão pela qual Bento XVI chegou a essa decisão.
É a primeira vez que um cardeal vaticano disse em voz alta o que o que quase todo
mundo acredita: o papa não vive no
vácuo, e se ele se encontra fraco, a longa lista de incêndios que ele se
esforçou para apagar deve fazer parte da razão que explica isso.
REFLEXÕES EM TORNO DA RENÚNCIA DE BENTO XVI
Faustino
Teixeira, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF.
Muito complexa a
situação da Igreja Católica Romana. Lemos hoje, 13-02-2013, na Folha de São
Paulo, em reportagem de Patrícia Brito, que o cardeal Cláudio Hummes, arcebispo
emérito de São Paulo (e que participará do próximo conclave) sublinhou que “dificilmente o papa que substituirá Bento
XVI mudará a forma como a Igreja lida com temas considerados polêmicos” e
“será difícil simplesmente dizer sim àquilo que é proposto pela sociedade ou
pelos legisladores”.
Essa é, infelizmente, a cantilena que sempre estamos a ouvir por parte de segmentos da hierarquia atual. Uma dificuldade impressionante de ousadia e profetismo.
Massimo Franco
no jornal Corriere della Sera, avalia que o que assistimos hoje é o “sintoma
extremo, final, irrevogável da crise de um sistema de governo e de uma forma de
papado”. E fala da deriva de uma igreja-instituição que em poucos anos passou
da condição de “mestra de vida” para “pecadora”,de “ponto de referência moral
da opinião pública ocidental, a uma espécie de “acusada global”, agredida e
pressionada por segmentos diversificados.
Clóvis Rossi,
em sua coluna na Folha de São Paulo chega a falar de ”guerra civil no
Vaticano”.
Gianni Vattimo,
filósofo italiano, em seu blog, sublinha que a demissão era a única coisa que
um papa poderia seriamente fazer. Ele acrescenta que se Jesus vivesse hoje
entre os seus pseudo-seguidores “abandonaria imediatamente o Vaticano, e talvez
retornasse à Palestina para estar junto aos perseguidos e expropriados daquele
lugar, e não perderia mais seu tempo e alma, seguindo as vicissitudes da
política italiana (...)”. Para Vattimo, a renúncia papal indica um
distanciamento das “funcionalidades terrenas” e a necessidade de apontar,
talvez, a “face anárquica e autenticamente sobrenatural do Evangelho”, abrindo
a possibilidade para o cristianismo de se tornar novamente “uma escolha de vida
possível para as pessoas de nosso tempo”.
Leonardo Boff
fala também no último texto sobre a importância de retomada de um modelo
dialogal para a igreja, de sintonia com o Vaticano II, Medellin e Puebla, de
uma “igreja-aprendiz e aberta ao diálogo com todos”, de liberdade e
criatividade.
Hans Kung
em seu recente livro – “A Igreja ainda tem salvação?”, indica a necessidade de
um tratamento para a igreja, de uma “terapia ecumênica” que ajude a vencer a
“osteoporose do sistema eclesiástico”. E coloca
o dedo na ferida, ao falar da necessidade imperiosa de uma reforma da cúria
romana à luz do evangelho. Uma reforma que deverá contemplar:
Ø Humildade
evangélica, com renúncia de todos os títulos honoríficos estranhos à Bíblia;
Ø Simplicidade
evangélica;
Ø Fraternidade
evangélica;
Ø Liberdade
evangélica.
Nesse
delicado momento de preparação do conclave que escolherá o novo papa, os
analistas chamam a atenção para os problemas
internos da cúria romana, que também pressionaram a decisão da renúncia de
Bento XVI.
José Ignácio González Faus, renomado teólogo espanhol, em entrevista
publicada no O Globo de 14-02-2013, faz menção a tais pressões. Ele sinaliza: “Não estranharia que a renúncia estivesse
ligada a problemas com a Cúria”. O papa “já arrastava problemas com a Cúria
desde que afastou do sacerdócio Marcial Maciel, acusado de abusos sexuais”.
Chama
a atenção aquela oração proferida pelo então cardeal Ratzinger na cerimônia da
sexta-feira santa em Roma, em comentário da IX estação da via sacra:
“Quanta sujeira há na Igreja, e
precisamente entre aqueles que, no sacerdócio deveriam pertencer completamente
a Ele! Quanta soberba, quanta auto-suficiência!
”Senhor, muitas vezes a vossa Igreja parece-nos uma barca que está para
afundar, uma barca que mete água por todos os lados. E mesmo no vosso campo de
trigo, vemos mais cizânia que trigo. O
vestido e o rosto tão sujos da vossa Igreja horrorizam-nos. Mas somos nós
mesmos que os sujamos! Somos nós mesmos que Vos traímos sempre, depois de todas
as nossas grandes palavras, os nossos grandes gestos.”
Segundo
González Faus, os intérpretes em avaliação feita na época, achavam que ele
estivesse se referindo ‘a pedofilia na igreja, mas em verdade, os indícios apontam que poderia ser uma alusão
à Cúria romana, essa mesma cúria que
terá voz ativa na eleição do próximo papa em 2013.
O PROBLEMA NÃO É O PAPA... O PROBLEMA É O PAPADO
José Maria Castillo,
teólogo espanhol, autor de inúmeros livros, inclusive traduzidos para o
português, em artigo publicado em seu blog Teologia sin Censura, 12-02-2013.
Entre
os numerosos comentários, que logicamente a notícia da renúncia do papa Bento
XVI está suscitando, sinto falta de uma reflexão que, ao meu ver, parece ser a
mais importante, a mais urgente, a que mais pode (e deveria) influir no futuro
da igreja e em sua possível influência para o bem deste mundo tão atormentado
no qual vivemos.
Refiro-me
à reflexão que distingue entre o que é e representa a pessoa do “papa”, por um
lado, e o que é e representa a instituição do “papado”, por outro. (...)
Ninguém colocará em dúvida que seja muito mais determinante se deter em pensar
sobre o que representa, e o que deveria representar, não este papa ou outro, mas aquilo que
realmente é e faz a instituição que, de
fato, é o papado, da maneira como é organizada, como funciona, e como é
administrada, independentemente de quem seja o papa que a presidiu ou que a
pode presidir.
Ele
pergunta:
É
melhor para a Igreja que todo o poder para governar uma instituição, a qual
pertence mais de 1,2 bilhão de seres humanos, esteja concentrado num só homem,
sem mais limitações a não ser as impostas
pela própria crença desse homem, que ocupa o papado?
Da
forma como está disposto no vigente Código de Direito Canônico, é assim que
está pensado, legislado, e assim funciona o papado. Porque, entre outras
coisas, o papa retira e nomeia os mais altos e mais baixos cargos da
Cúria. Retira e coloca cardeais, bispos
e cargos eclesiásticos de toda índole. E faz tudo isto sem ter que dar
explicações a ninguém, sem que ninguém possa lhe pedir responsabilidades. Além do mais, tudo se mantém desta forma,
independente de quem seja o papa reinante, da idade que possua, da saúde que
goze ou padeça, de sua mentalidade, preferências e até de suas possíveis
manias.
Há
uma suposta constante intervenção na
tomada de decisões do papa reinante, do Espírito Santo. Essa suposta
intervenção não está demonstrada em nenhuma parte. Como também não está demonstrado nem há argumentos para
provar, que o bispo de Roma, por mais que seja sucessor de Pedro, precise
acumular todo o poder que o Papa e seus teólogos incondicionais garantem que
acumula por vontade de Deus.
Em
que lugar está dito isso? Em quais argumentos se baseia? O cardeal Yves Congar,
o melhor conhecedor de toda essa história, com o qual a Igreja pôde contar no
último século, deixou escrito em seu diário pessoal que tudo isso era uma manipulação organizada pelos interesses de Roma,
cujas raízes chegam ao século segundo da história do cristianismo.
Em todo Novo Testamento, em nenhuma
parte consta que a Igreja precise estar organizada desta forma e assim tenha
que ser administrada. Em relação ao famoso texto de Mt 16,18-19,
entre os melhores estudiosos do Evangelho de Mateus,a cada dia aumenta o número
daqueles que afirmam que essas palavras
não saíram da boca de Jesus. É um texto redacional, muito posterior ao texto
original, acrescentado ao evangelho pelo último redator do texto que nos
chegou.
A
Igreja está, precisamente nestes dias, num momento privilegiado para enfrentar
sem medo estas questões que apontam para problemas de fundo, que ela ainda não
resolveu. Se não forem enfrentados e levados à sério, esta Igreja continuará perdida (e calada), por mais lúcido e mais
valioso que seja o futuro papa. Porque, insisto, o problema da Igreja não é o papa, é o papado, da forma como está
organizado e como funciona, independentemente de quem seja o homem que ocupa o
trono papal.
O PASTOR E O PODER
Eugenio Scalfari,
jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, em artigo de 12-02-13.
Um
ato revolucionário a renúncia do papa.Qual
é a natureza e quais serão as consequências dessa revolução?
A natureza é evidente: a Igreja se
laiciza. O papa até agora foi considerado dentro da Igreja e
da comunidade dos fiéis como Vigário de Cristo na terra e, quando fala “ex cathedra”
sobre as questões de fé a sua palavra é infalível, como decretou o Concílio
Vaticano I de 1870.
Para
a renúncia o cânone põe uma única condição: que o papa tome usa decisão em
plena liberdade, isto é, que não pese sobre ela alguma sombra de pressão ou
chantagem. A vontade de Cristo nem é citada, nem Ratzinger faz menção a ela nas
breves palavras com as quais comunicou a sua decisão ao Consistório.
Portanto,
diminui a relação direta entre o Chefe
da Igreja e o Filho de Deus, e a autoridade do bispo de Roma sobre toda a
cristandade não deriva de outra coisa que da eleição em conclave por parte dos cardeais, uma cerimônia totalmente
laica, salvo o lugar em que ocorre (a capela Cistina),o perfume de incenso
e o som dos sinos.
As consequências dessa secularização e
laicização referem-se à distribuição dos poderes dentro da Igreja:
paralelamente à diminuição do papel do papa, aumentará a dos concílios e dos
sínodos, isto é, das assembléias dos bispos.
O
pedido implícito mas evidente do Concílio Vaticano II era esse – o
da colegialidade – as decisões sendo compartilhadas entre o papa e os bispos
do mundo inteiro. O que tem muita relevância, uma vez que os bispos estão
muito mais interessados na pastoralidade do que no poder da hierarquia curial.
A
igreja como instituição se fundamenta sobre duas autoridades: a do papa e a dos
concílios e dos sínodos. O papa coordena e dirige essas assembléias dos bispos,
mas as decisões são tomadas pelos bispos, que são os depositários do legado dos
apóstolos de Jesus.
A cúria, em teoria, deveria fornecer aos pastores os
instrumentos e os meios materiais para evangelizar as almas e difundir o credo.
No
entanto, por séculos e milênios, a Igreja-instituição sufocou a pastoralidade e
promoveu guerras, inquisições, corrupção,
simonia. A instituição sempre lutou por obter poder temporal.
Com
o fim do poder temporal (separação Estado-Igreja) a Igreja-instituição manteve
a supremacia sobre a igreja militante e pastoral, recuperando o poder através
da política e do fascínio do espetáculo.
O
espetáculo teve sua estrela mais brilhante na figura do Papa Wojtyla enfrentando
sofrimentos terríveis, até mesmo sua agonia e morte.
RENÚNCIA – MOMENTO PARA REPENSAR
AS ESTRUTURAS DE GOVERNO E OS PRIVILÉGIOS MEDIEVAIS DA IGREJA CATÓLICA
Ivone Gebara, escritora,
filósofa e teóloga, em artigo publicado por Adital, 13-02-2013.
Depois
da louvável atitude do ancião Bento XVI renunciando ao governo da Igreja
Católica Romana sucederam-se entrevistas com alguns bispos e sacerdotes nas
rádios e televisões de todo o país.
No
contexto das primeiras notícias, o que chamou minha atenção foi a forma como
alguns padres entrevistados ou padres liderando uma programação televisiva,
quando perguntados sobre quem seria o novo papa saíssem pela tangente. Apelavam
para a inspiração ou vontade do Espírito Santo como aquele do qual dependia a
escolha do
novo
pontífice romano. Nada de pensar em pessoas concretas para responder a
situações mundiais desafiantes, nada de suscitar uma reflexão na comunidade,
nada de falar dos problemas atuais da Igreja que a tem levado a um
significativo marasmo, nada de ouvir os clamores da comunidade católica por uma
democratização significativa das estruturas anacrônicas de sustentação da
Igreja institucional.
O
que se ouviu foi “ um discurso padrão trivial e abstrato bem conhecido, um
discurso que continua fazendo apelo a forças ocultas e de certa forma
confirmando seu próprio poder. A
contínua referência ao Espírito Santo a partir de um misterioso modelo
hierárquico é uma forma de camuflar os reais problemas da Igreja e uma forma de
retórica religiosa para não desvendar os conflitos internos que a instituição
tem vivido. A teologia do Espírito Santo continua para eles mágica
expressando explicações que já não conseguem falar aos corações e às
consciências de muitas que têm apreço pelo legado do Movimento de Jesus de
Nazaré. É uma teologia que continua
igualmente a provocar a passividade do povo crente frente às muitas dominações
inclusive as religiosas.
Já
é tempo de sairmos dessa linguagem metafísica abstrata como se um Deus iria se
ocupar especialmente de eleger o novo papa prescindindo dos conflitos,
desafios, iniqüidades e qualidades humanas. Já é tempo de enfrentarmos um
cristianismo que admita o conflito das vontades humanas e que no final de um
processo eletivo, nem sempre a escolha feita pode ser considerada a melhor para
o conjunto.
A
eleição de um novo papa é algo que tem a ver com o conjunto das comunidades
católicas espalhadas pelo mundo e não apenas com uma elite idosa minoritária e
masculina. Por isso é preciso ir mais além de um discurso justificativo do
poder papal e enfrentar-se os problemas e desafios reais que estamos vivendo.
Preocupa-me
que não se discuta de forma mais aberta o fato de que o governo da Igreja
institucional ser entregue a pessoas idosas que apesar de suas qualidades e
sabedoria já não conseguem mais enfrentar com vigor e desenvoltura os desafios
que estas funções representam. Até quando a gerontologia masculina papal será o
doublé da imagem de um Deus branco, idoso e de barbas brancas? Haveria alguma
possibilidade de abrir essas discussões nas comunidades cristãs populares que
têm o direito à informação e à formação cristã mais ajustada aos nossos tempos?
Não podemos continuar tratando o povo
como ignorante e incapaz de perguntas inteligentes e astutas em relação à
igreja.
Os
religiosos mantém essa situação muitas vezes cômoda por ignorância ou por
avidez de poder. Afirmar a interferência
divina nas escolhas que a hierarquia da Igreja Católica faz, sem levar em
consideração a vontade das comunidades cristãs espalhadas pelo mundo é um
exemplo flagrante dessa situação.
É
como se quisessem reafirmar erroneamente que a Igreja é em primeiro lugar o
clero e as autoridades cardinalícias às quais é dado o poder de eleger o novo
papa e que esta é a vontade de Deus. Aos milhares de fiéis cabe apenas rezar
para que o Espírito Santo escolha o melhor. De maneira hábil sempre estão
tentando fazer os fiéis escapar da história real, de sua responsabilidade
coletiva e apelar para forças superiores que dirijam a história e a igreja.
Sabendo
das muitas dificuldades enfrentadas pelo papa Bento XVI durante seu curto
ministério papal, as empresas de comunicação católica apenas ressaltam suas
qualidades, sua doação à igreja, sua inteligência teológica como se quisessem
esconder os limites de sua personalidade e de sua postura política não apenas
como pontífice, mas também por muitos anos, como presidente da Congregação da
Doutrina da fé, o antigo Santo Ofício. Não permitem que as contradições humanas
do homem Joseph Ratzinger apareçam e que sua intransigência legalista e o
tratamento punitivo que caracterizaram sua pessoa sejam lembrados.
As estruturas pré-modernas que ainda
mantém esse poder religioso precisam ser confrontadas com os anseios
democráticos de nossos povos na busca de novas formas de organização que se
coadunem melhor com os tempos e grupos plurais de hoje.
Precisam ser confrontadas com as lutas das mulheres, das minorias e maiorias
raciais, de pessoas de diferentes orientações sexuais e escolhas, de
pensadores, de cientistas, de trabalhadores das mais distintas profissões. Precisam
ser retrabalhadas na linha de um diálogo maior e mais profícuo com outros
credos religiosos e sabedorias espalhadas pelo mundo.
O Espírito Santo não pode ser mais
usado para justificar e manter estruturas privilegiadas de poder e tradições
mais antigas ou medievais como se fossem uma lei ou uma norma indiscutível e
imutável.
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