sexta-feira, 2 de outubro de 2015

JESUS - DAS TRADIÇÕES ORAIS À ESCRITA DOS EVANGELHOS





JESUS – DAS TRADIÇÕES ORAIS À 

ESCRITA DOS EVANGELHOS

OU

DO JESUS HISTÓRICO AO CRISTO DA FÉ



JESUS HISTÓRICO



OLÁ, LEITORES (AS) E AMIGOS(AS) DE TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE!


Vamos dar continuidade aos nossos estudos e reflexões sobre o tema dos evangelhos e o Jesus histórico.

Em nossa postagem anterior colocamos uma das questões levantadas por John Dominic Crossan em sua obra “O nascimento do Cristianismo – o que aconteceu  nos  anos  que  se  seguiram  à  execução de Jesus” :


O que pode ter acontecido após a morte de Jesus até o momento em que surgem os evangelhos?


Em minhas pesquisas para desenvolver esse tema encontrei um material valiosíssimo através da internet, no qual me basearei ao longo deste trabalho.

Esse material consta de uma dissertação para a obtenção do título de Mestre em História Comparada, apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Departamento de História.

A dissertação data do ano de 2009 e intitula-se “Tradições orais e performances comparadas nos evangelhos de Marcos e Q”, de autoria de Lair Amaro dos Santos Faria, com a orientação do Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese.

Destacarei alguns trechos dessa dissertação, de interesse mais direto para a temática, a qual enriquecerei com algumas outras pesquisas em outras obras.


A tese veio de encontro à problemática a qual estamos tentando esclarecer.


Como do Jesus histórico chegamos ao Jesus descrito nos evangelhos?

Como do Jesus histórico chegamos ao cristianismo?


Lendo os evangelhos entramos em contato com diversas frases/ discursos que Jesus teria proferido. 

É preciso porém que a gente pense:
  •               Quais dessas frases/discursos realmente são provenientes do Jesus histórico, isto é, de Jesus de Nazaré?



  •                           Quais delas teriam sido a ele atribuídas pelos seus seguidores sem que tenham fidedignidade histórica?


JESUS TERIA RECOMENDADO AOS SEUS SEGUIDORES QUE REGISTRASSSEM SUAS PALAVRAS E AÇÕES?


Não há em nenhuma parte dos evangelhos, sejam eles canônicos ou apócrifos, qualquer recomendação por parte do Jesus histórico, ou que a ele tenha sido atribuída, para que seus seguidores registrassem em textos escritos, suas palavras e suas ações, para as gerações futuras.  

Jesus em sua atividade pelas aldeias da Galileia pregava sobre a vinda do Reino de Deus. Essa pregação tinha um caráter tanto religioso quanto político.

Os estudiosos indicam algumas sentenças que teriam sido pronunciadas pelo Jesus histórico dando a seus discípulos algumas recomendações para que eles defendessem sua mensagem.

Ø “Quem vos ouve, ouve a mim”.
Ø “Quem recebe um profeta na qualidade de profeta, receberá a recompensa própria de um profeta”.
Ø “Ide e pregai”.
Ø “Sede transeuntes”.

Há nessas frases quatro verbos que demonstram a existência de um projeto de Jesus, que envolve o OUVIR, RECEBER, PREGAR, TRANSITAR.

A mensagem de Jesus é ouvida. Essa mensagem é recebida, aceita e interiorizada. Os discípulos seguiam o estilo de Jesus – uma vida itinerante. Eles seguem pelas aldeias da Palestina pregando os ensinamentos de Jesus. São portadores de um texto oral que vai ser ouvido, recebido, entendido coletivamente.

DE QUE FORMA SE TERIA INICIADO UM REGISTRO POR ESCRITO SOBRE A ATUAÇÃO DE JESUS?

Esse texto oral com as falas e as ações de Jesus com o tempo foi conservado de forma escrita através de um registro em um conjunto de documentos de vários tipos.

Os estudiosos levantam diversas hipóteses de como se iniciou esse processo de redação e composição dos manuscritos cristãos

Antes dos evangelhos que conhecemos circulavam tradições orais formadas a partir das memórias fragmentadas de diferentes testemunhas oculares.

Não podemos esquecer que as memórias que as pessoas guardam em seu cérebro, nunca são totalmente fiéis aos fatos observados e falas ouvidas, mas são afetadas por diversos fatores tais como fatores intelectuais (nível de inteligência, atenção), ou fatores emocionais por exemplo.

Dessa forma, houve um intervalo de tempo entre a vida pública do Jesus histórico, e a fixação por escrito feita pelos seguidores de suas palavras e ações na forma de evangelhos. Nesse intervalo de aproximadamente 40 anos aconteceu a transmissão oral das recordações que esses seguidores tinham de Jesus.



A TEORIA DE TEREM EXISTIDO TEXTOS ANTERIORES AOS EVANGELHOS


COMO TERIAM SIDO OS PRIMEIROS ESCRITOS CRISTÃOS SOBRE JESUS?


Os primeiros escritos cristãos eram textos pequenos, fragmentados, chamados de perícopes.  Foram escritos pelos seguidores de Jesus que eram oriundos de comunidades de camponeses e pescadores da Palestina dominada pelo Império Romano. Não se pode esquecer o contexto social e histórico dessas comunidades que eram caracterizadas por uma fraca penetração da cultura escrita.


AS DIVERGÊNCIAS ENTRE OS ESTUDIOSOS SOBRE ESSA TEORIA


Os estudiosos tem opiniões diferentes a respeito de terem existido ou não textos pequenos anteriores aos evangelhos na forma como os conhecemos.

Na concepção de Raymond Brown não teriam existido escritos anteriores aos evangelhos porque as primeiras gerações cristãs acreditavam no “fim dos tempos”. Eles acreditavam que Jesus logo retornaria antecipando o fim do mundo. Essa crença desencorajaria os cristãos a escreverem sobre Jesus para as gerações futuras que não iriam existir. (2004:181-189).

Charles F. M. Moule outro biblista renomado, coloca que a literatura se destacava menos como um meio de propaganda cristã do que como pregação oral. Havia uma coexistência de tradições orais e folhas de papiro redigidas em aramaico, hebraico ou grego, que traziam adágios ou ditos de Jesus, que mais tarde fizeram parte do primeiro evangelho escrito – Marcos.

Para Helmut Koester havia desde o começo uma tradição oral, que pode também ter sido transmitida de forma escrita. Para Koester os primeiros missionários cristãos e líderes das igrejas não eram pessoas iletradas que não sabiam ler e escrever.

Esse material escrito era usado nos momentos de comunicação oral por ocasião das pregações, da catequese e nas celebrações comunitárias. Eram lidos em voz alta, constituindo-se em literatura oral.

Outro estudioso – Gamblereconhece que os escritos cristãos primitivos apresentam traços de uma tradição oral. Isto porém não significa que o cristianismo primitivo se caracterizava como uma cultura oral e iletrada.

Gamble analisa que o costume de classificar os primeiros escritos cristãos como literatura popular das camadas mais baixas da sociedade minimizou o seu papel como literatura e diminuiu a cultura letrada dos primeiros seguidores do movimento de Jesus.

Deve-se considerar que a literatura cristã primitiva estava em continuidade com as tradições literárias judaicas que estavam num contexto sócio-cultural mais amplo. Pode-se dizer que a literatura cristã primitiva é filha da tradição literária judaica.

Os escritores cristãos primitivos fazem constantemente em seus textos citações dos livros sagrados judeus. Deviam reunir-se em grupos para estudar e interpretar as Escrituras Judaicas, e a partir delas construíram suas convicções religiosas e criaram os textos que eram úteis nas pregações e instruções cristãs. Gamble assim tem uma visão que admite o letramento entre algumas ou todas as lideranças cristãs primitivas.


Gerd Theisen levanta a hipótese da existência de três tradições desenvolvidas entre os círculos judaico-cristãos de adeptos do movimento do Jesus histórico:

1.  Coleções de ditos do Jesus histórico – produzidas por carismáticos itinerantes que reproduziam o estilo de vida de Jesus, sendo essas pessoas as verdadeiras transmissoras do novo movimento;

2.  Tradição da paixão – transmitida por grupos fixos de simpatizantes (não itinerantes) e que, muito provavelmente se formou a partir das recordações sobre os últimos dias de Jesus. Essa tradição da paixão teria surgido em alguma data próxima aos fatos nela narrados;

3.  Tradição dos milagres – tradição marcadamente popular formada pelas histórias de milagres.

Theisen assinala que essas tradições não eram estanques, mas que perpassavam esses três contextos sociais (popular, dos itinerantes, das comunidades fixas). Essas tradições se recombinavam, sofrendo todo tipo de alterações, diminuindo ou aumentando de tamanho, incluindo ou excluindo elementos, enfim preservando pouco daquilo que originalmente foi sua matriz.




RESUMINDO






O que se pode depreender até aqui, é que os estudiosos não formaram um consenso amplo se o espaço de tempo entre a morte de Jesus de Nazaré (Jesus histórico) e a produção dos evangelhos foi preenchido pela transmissão das memórias sobre Jesus exclusivamente por meio de tradições orais ou se essas coexistiram com anotações escritas.








O CRISTIANISMO MAIS PRIMITIVO FOI CONSTITUÍDO POR SUJEITOS LETRADOS?


COMO ERA O MUNDO SOCIAL DAS PRIMEIRAS COMUNIDADES JUDAICO-CRISTÃS?


QUEM ERA LETRADO NA PALESTINA ROMANA DO SÉCULO I?



Cristopher D. Stanley considera que o interesse testemunhado nas duas últimas décadas pelos estudiosos do Novo Testamento pelo mundo social das comunidades primitivas cristãs produziu significativos avanços. No entanto, ele indica que o aspecto do não-letramento massivo que caracterizava o mundo dos cristãos primitivos tem sido minimamente observado pelos acadêmicos.

Stanley indica que a maioria dos estudiosos contemporâneos trabalha com um modelo social que pressupõe níveis de letramento que variam de médio e alto no interior das primeiras comunidades cristãs.

Quão realista é esse modelo? É evidente que estimar a extensão do letramento dentro das comunidades judaico-cristãs do primeiro século é um empreendimento incerto.

Vários estudiosos reconhecem que os baixos níveis de letramento estavam entre um dos fatores que contribuíram para a transmissão oral das tradições de Jesus e sobre Jesus antes de sua composição na forma dos evangelhos.

No entanto, o simples fato de que os evangelhos foram escritos e preservados implica um conhecimento da escrita à medida de que não faria sentido para seus autores compor textos para pessoas que não os pudessem ler.

Os estudiosos que aderem a essa posição, admitem que os textos eram escritos para ser lidos e estudados por judeus cristãos comuns. Mas como provar isso?

A transmissão oral por décadas, das tradições de e sobre Jesus, mostra a existência dos baixos níveis de letramento na Palestina. Como esse baixo letramento poderia ter afetado o uso dos evangelhos nas comunidades primitivas após eles terem sido escritos?

Segundo Stanley, uma porção de estudos recentes questionou se o letramento dos judeus da antiguidade era, de fato, tão alto quanto anteriormente se pensava. Muitos pesquisadores depois de uma inspeção mais detida das evidências se convenceram de que os textos usados como argumentos a favor de um letramento judaico amplamente disseminado estavam, em verdade, falando acerca de subgrupos especiais situados no interior da comunidade judaica.


Catherine Hezser concluiu, após exaustivo levantamento de evidências literárias na Palestina romana, que pouquíssimos judeus eram capazes de ler textos simples e assinar seus próprios nomes durante a era imperial. 

A autora descreve o letramento entre os judeus em cinco níveis. O nível com pessoas altamente letradas que podiam ler textos em aramaico/hebraico e grego era composto por um número muito pequeno de pessoas. Uma proporção bem mais ampla da população se situava no nível de identificar letras, nomes e rótulos. Mas a vasta maioria da população tinha acesso a textos apenas por meio de intermediários – pessoas letradas que lessem os textos para ela.


Gamble sublinha que o grau de cultura escrita na igreja primitiva não podia ser maior do que o existente na sociedade greco-romana da qual o cristianismo era uma parte. No período apenas 10% da população sabia ler. Deve-se admitir portanto que, a grande maioria dos cristãos nos primeiros séculos da igreja eram iletrados, não porque fossem uma exceção, mas porque eles eram homens típicos de seu tempo.


John Kloppenborg tem uma compreensão bastante similar. Ele considera improvável que os cristãos do primeiro século desfrutassem de um nível de letramento maior do que a população como um todo.


John Dominic Crossan apresenta alguns dados dos estudos de Gerhard Lenski sobre as classes sociais existentes nas sociedades agrárias onde predomina uma acentuada desigualdade social.[1] A classe camponesa representava a grande maioria da população. O fardo de sustentar o Estado e as classes privilegiadas estava nos ombros das pessoas comuns, principalmente dos lavradores que constituíam a maioria esmagadora da população.[2]

Jesus nasceu em Nazaré. Uma aldeia muito pequena onde a atividade principal dos aldeões era a agricultura e onde a arqueologia não encontrou nenhum tipo de prosperidade. Em plena era romana, Nazaré era uma aldeia profundamente judaica.[3]

Crossan postula que quase por definição, os camponeses são analfabetos. Cita estudos de William Harris segundo os quais a alfabetização entre os judeus sob o domínio romano estava abaixo de 3%.

Assim afirma Crossan:

“Jesus era um camponês de um povoado camponês. Portanto, para mim, Jesus era analfabeto até que o contrário seja provado. [...] Assim, mesmo que Jesus fosse um camponês falando a camponeses, outros, além de camponeses, o ouviam.

O movimento do Reino de Deus de Jesus começou como movimento de resistência camponesa, mas abandonou seu caráter localista e regionalista sob a liderança dos letrados”.[4]



Concordamos com a primeira premissa dessa dissertação que é:




A transição do Jesus histórico para o cristianismo mais primitivo esteve sob a responsabilidade de camponeses e pescadores iletrados – isto é, os primeiros seguidores do movimento de Jesus, situados nas aldeias e vilas rurais da Palestina romana, eram homens e mulheres marcadamente iletrados”.





O QUE SIGNIFICA “CRISTIANISMO MAIS PRIMITIVO”?



Essa expressão se refere aos anos perdidos do cristianismo – os anos 30 e 40 do I século, décadas obscuras, envoltas em silêncios, que se seguiram imediatamente à execução de Jesus.[5]

Crossan ressalta que não há documentos escritos datados desse período – anos 30 à 40 d.C. – que permitam reconstruir historicamente o mesmo. No entanto ele apresenta um novo método que combinando a antropologia, a história, a arqueologia e a literatura tornará possível estabelecer o contexto da forma mais definida possível, em que foram escritos os textos  cristãos  permitindo que eles sejam melhor compreendidos.[6]

Quando Crossan afirma que inexistem fontes escritas datadas dos anos 30-40 d.C isso pode ser consequência do fato de que aqueles que disseminavam o programa do Reino de Deus eram, assim como Jesus, iletrados.

Em diferentes momentos do primeiro século após a morte de Jesus surgiram textos que reuniam lembranças das pessoas que viveram na mesma época de Jesus e testemunharam sua autuação.

Os estudiosos concordam de forma relativamente ampla que os documentos mais primitivos da literatura cristã seriam o evangelho segundo Marcos e o evangelho Q.


O QUE SERIA O EVANGELHO  Q?

NO QUE CONSISTE A TEORIA DAS DUAS FONTES?



Crossan indica haver um grande consenso entre os estudiosos: o de que Mateus e Lucas usaram Marcos como principal fonte na composição de seus próprios evangelhos.

Depois de chegar a esta conclusão, os estudiosos observaram que havia outras passagens comuns a Mateus e Lucas, mas não presentes em Marcos. De onde elas vieram? A sequência geral e o conteúdo específico daquelas passagens comuns a Mateus e Lucas e não derivadas de Marcos levaram os especialistas a postular a existência de uma segunda fonte grega escrita, usada juntamente com Marcos por aqueles dois outros escritores sinóticos – Mateus e Lucas.

Esta outra fonte principal é chamada de Q, porque foram exegetas alemães que a descobriram, e Quelle é a palavra alemã que significa fonte.

Crossan afirma denominar essa fonte de Evangelho de Q em sinal de completo respeito. O Evangelho de Q (também chamado de Evangelho de Sentenças Q)foi completado, mais provavelmente em duas etapas, por volta de meados do século I, e foi, possivelmente composto na Galiléia  e em suas imediações.

Essas conclusões são chamadas de Teoria das Duas Fontes, significando que Mateus e Lucas usaram, cada um, duas fontes principais, Marcos e Q, como base para seus próprios escritos.[7]


COMO SURGIRAM OS DOCUMENTOS MAIS ANTIGOS DA LITERATURA CRISTÃ – MARCOS E Q


Pode-se imaginar que esses dois documentos mais antigos da literatura cristã remontam aos carismáticos itinerantes – missionários ambulantes que deixaram o pouco que tinham e se engajaram totalmente na divulgação da pregação de Jesus sobre o Reino de Deus.

Nas comunidades cristãs que iam se estabelecendo sugiram indivíduos letrados que se encarregaram de colocar por escrito as tradições de e sobre Jesus que eles ouviam daqueles pregadores itinerantes.

Esses indivíduos letrados e os grupos a que pertenciam possuíam expectativas diferentes para o povo de Israel e muitos embates internos ocorreram dentro desses grupos. Em decorrência, aconteceram alterações programáticas no movimento de Jesus.











RESUMINDO


Homens e mulheres que viram e ouviram o Jesus histórico acreditaram na utopia do Reino de Deus. Para eles o assassinato de seu líder era um sinal para que a proposta de Jesus fosse espalhada pelo mundo.


Jesus vivia um estilo de vida itinerante. Seus seguidores adotaram também esse estilo de vida itinerante, percorrendo as aldeias da Galileia sem fixar moradia em nenhuma delas.


Essas pessoas eram iletradas, como quase todas as pessoas de sua época eram. Portanto não possuíam anotações escritas que registrassem as palavras de Jesus (seus ensinamentos) e suas ações. Eles apenas carregavam em suas memórias as lembranças daquilo que viram e ouviram.


Havia o risco de com o tempo essas recordações irem se perdendo, os detalhes começarem a ser esquecidos. E não se pode deixar de destacar que quem ouve uma estória, a entende de acordo com seu nível de entendimento, de maturidade, de experiência de vida.  E que ao recontá-la para outras pessoas sempre apresentará alterações na estória narrada seja por acréscimos, omissões e até deturpações.
Assim se passaram quatro décadas após a morte de Jesus e somente nos anos 70 surge o evangelho de Marcos.


Supõe-se que os missionários itinerantes, ao retornar a alguma aldeia anteriormente visitada, percebessem que as estórias por eles contadas tempos atrás, agora estavam sendo contadas de forma diferente. Eles podem ter pensado numa forma de manter as narrativas padronizadas de forma a conservar as tradições de e sobre Jesus inalteradas.


Assim os primeiros textos que podem ter sido escritos por algumas pessoas que dominavam a escrita, tentavam reproduzir as pregações dos missionários que aconteciam em encontros coletivos.


Os textos dos evangelhos de Q e de Marcos são não obra de escritores alfabetizados que compõe um trabalho escrito numa escrivaninha.


Os textos dos evangelhos de Q e Marcos são uma transcrição posterior das pregações feitas pelos missionários itinerantes.


Quando se afirma que os missionários itinerantes guardavam na memória o que Jesus disse e fez, surge a necessidade de que nos debrucemos nos estudos que se dedicam a entender como a memória funciona.

      Podemos dizer que existe uma memória individual e uma memória social sendo ambas seletivasO que se conserva na memória, ou o que se esquece, depende de pessoa para pessoa, de lugar para lugar, de um grupo para outro, de uma época para outra de acordo com o que vem a ser significativo para o indivíduo ou sociedade.


Mas esse é um outro tema que pode ser tratado posteriormente em outra postagem.















[1] Crossan, John Dominic – “O Jesus histórico – a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo” – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994 (Coleção Bereshit) – p. 80
[2] Idem – p. 81
[3] Crossan, John Dominic – “O Jesus histórico – a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo” – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994 (Coleção Bereshit) – p. 51
[4] Crossan, John Dominic – “O nascimento do cristianismo – o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus” . São Paulo: Paulinas, 2004. – (Coleção Repensar) – p.275
[5] Crossan, John Dominic – “O nascimento do cristianismo – o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus” . São Paulo: Paulinas, 2004. – (Coleção Repensar) – p. 17
[6] Idem – p. 18
[7] Crossan, John Dominic – “Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus” – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995 – p.40

segunda-feira, 11 de maio de 2015

OS EVANGELHOS E O JESUS HISTÓRICO - PARTE II



OS EVANGELHOS E O JESUS HISTÓRICO
PARTE II





Em nossa postagem anterior inserimos a problemática sobre os evangelhos como fontes  para nos aproximarmos de Jesus de Nazaré, ou do Jesus histórico.

Analisamos comparativamente à luz de conhecimentos de especialistas várias textos paralelos dos evangelhos (textos que tratam de um mesmo episódio nas diferentes versões dos evangelistas).

Vimos que os evangelhos não são a solução do problema para se chegar ao Jesus histórico, muito pelo contrário,  os evangelhos constituem um grande problema que derivaram inúmeros estudos dos especialistas.

Dos estudos já realizados já se concluiu que:

   1-  os evangelhos não são biografias de Jesus;

 2- os evangelhos são interpretações das diferentes comunidades dos primitivos cristãos a respeito de Jesus;

     3-  as várias narrações evangélicas se encontram não no campo da História  mas no campo da mitologia – são fruto mais da fantasia e imaginação religiosas do que de realidades históricas.


Vamos nessa postagem avançar mais um pouco dentro desse tema fascinante...


Crossan, considera o registro quádruplo (evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João) o problema central para o resgate do Jesus histórico.

Theisen partilha das colocações de Crossan:

Os evangelhos são fontes de suma importância, mas apresentam obstáculos consideráveis ao historiador que quer utilizá-los como informações sobre Jesus de Nazaré e sobre a história do cristianismo.” [1]

Já demonstramos que uma leitura dos evangelhos, com intenções investigativas, centrando-se em passagens específicas com a comparação das diferentes versões dada em cada evangelho, diagnostica uma impressionante discordância entre eles.

Crossan esclarece em relação a essas divergências que elas não acontecem devido a problemas de memória de quem escreveu os evangelhos.

As divergências que se percebem entre os evangelhos devem-se a que cada evangelho tinha em mente uma teologia diferente, isto é, cada evangelho tinha uma interpretação a respeito de Jesus diferente dos demais.

Isto explica porque apesar de ter existido apenas um Jesus de Nazaré, puderam ter existido vários evangelhos, várias interpretações sobre Jesus, sendo que as autoridades da Igreja Católica apresentaram apenas os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João como válidos para se conhecer Jesus.

Esse é o outro problema que Crossan apresenta para podermos nos aproximar do verdadeiro Jesus de Nazaré.

“Esses quatro evangelhos não representam todos os primeiros evangelhos disponíveis ou mesmo uma mostra ao acaso entre eles, mas são ao contrário, uma coletânea planejada e conhecida como evangelhos canônicos.”[2]

O QUE SÃO EVANGELHOS?

Provavelmente a resposta mais comum a essa questão seria que são textos que narram a vida de Jesus, sua morte e ressurreição.

As pessoas pensam que o que leêm nos evangelhos são como uma reportagem da vida de Jesus. Essa é um equívoco que deve ser evitado.

Os evangelhos que temos no Novo Testamento são resultado de uma longa história que passaremos a analisar em uma próxima postagem.

Os evangelhos não foram escritos apenas para repetir aquilo que Jesus fez ou falou, mas sim para estimular as comunidades com seu exemplo. A necessidade de fortalecer as comunidades levou-as a dar aos evangelhos esse formato e o jeito pelo qual os conhecemos.”[3]

“Quando os evangelhos foram escritos pensou-se primeiramente na comunidade. Foram os problemas e desafios do dia-a-dia da comunidade que conduziram o processo de escrita do evangelho, e inclusive da escolha do que teria de fazer parte da narração. Para atender às necessidades da comunidade, foram inseridos alguns textos e deixados de fora tantos outros.”[4]

Olhando a ordem dos livros do Novo Testamento vemos que eles aparecem na seguinte sequência: Evangelho segundo Mateus, Evangelho segundo Marcos, Evangelho segundo Lucas, Evangelho segundo João, Atos dos Apóstolos e Cartas de Paulo e outros que não são alvo neste momento deste trabalho.

No entanto a ordem em que foram editados esses livros não obedece à ordem segundo a época em que eles foram redigidos. O primeiro evangelho que aparece é o Evangelho segundo Mateus mas isso não significa que ele foi o texto mais antigo, o primeiro a ser escrito.


Os textos mais antigos do Novo Testamento são as cartas de Paulo. Todos os evangelhos foram elaborados e redigidos em épocas mais tardias refletindo cada um a conjuntura de suas comunidades.




Há muitos outros aspectos que tem de ser analisados em relação aos evangelhos:


Ø Quem os escreveu? Teriam sido pessoas com os nomes de Mateus, Marcos, Lucas e João?


Ø Quando e onde esses textos teriam sido escritos?


Ø Esses textos seriam absolutamente originais, ou foram escritos refletindo e/ ou resistindo as influências de outras culturas?


Ø Os quatro evangelhos que conhecemos teriam sido os únicos textos escritos a respeito de Jesus ou teriam existido outros?


Crossan trata de lacunas na vida de Jesus. Lacunas tais como:

§  anos sobre os quais nada se sabe de sua adolescência à idade adulta 

§  anos sobre os quais pouco se sabe após a sua morte e o surgimento dos evangelhos.

Crossan levanta questões à respeito da vida de Jesus e de seus seguidores:

Ø “Por onde Jesus andou nas décadas que antecederam o início de sua vida pública, como seguidor de João Batista?”


Ø “Já paramos para pensar sobre o que possa ter acontecido após a morte de Jesus até o momento em que surgem os evangelhos?”


Ø “Por que os primeiros anos do cristianismo estão tão envoltos em silêncio?


Diz Crossan:

“A obscuridade dos anos 30 e 40 é realçada pelo esplendor comparativo dos anos 50. A respeito dessa década mais tardia, temos as cartas do apóstolo Paulo. Elas nos dão a conhecer comunidades cristãs em quatro províncias romanas: Galácia e Ásia, no centro e no oeste da Turquia. Macedônia e Acaia no norte e sul da Grécia. Delas aprendemos sobre igrejas urbanas em Filipos, Tessalônica, Éfeso Corinto. Elas nos dão vislumbres de acontecimentos passados nos anos 30 e 40 em Damasco, Antioquia e Jerusalém .[5]

Crossan está se referindo a que os primeiros textos escritos sobre Jesus depois de sua morte são as cartas de Paulo datadas dos anos 50. Todos os evangelhos constantes no Novo Testamento foram escritos mais tardiamente, depois do ano 70 d.C.

Crossan fala da obscuridade dos anos 30-40 porque neles não ocorreu a redação de nenhum dos textos que possuímos no Novo Testamento que nos tragam alguns dados sobre Jesus.

Quando Crossan se refere ao esplendor comparativo da década de 50, é porque nessa década Paulo redigiu as diversas cartas às comunidades cristãs por ele fundadas tratando de diversos problemas e questões que essas comunidades estavam passando, onde ele desenvolve a sua teologia.

Paulo pouco fala sobre Jesus, sua vida, seus ensinamentos, até porque Paulo não conheceu Jesus, nunca esteve com ele, nunca testemunhou seus atos nem escutou seus ensinamentos.


A QUESTÃO DA AUTORIA DOS EVANGELHOS


Mateus, Marcos, Lucas, João e Pedro eram pessoas reais, mas, os escritos que levam seus nomes foram-lhes atribuídos, e não escritos por eles. Originalmente, Mateus e todos os outros evangelhos circulavam anonimamente e foram provavelmente patrocinados pelas comunidades para quem eles foram escritos, em vez de pelos indivíduos através dos quais eles foram compostos. Por fim, no século II, cada um foi ficcionalmente ligado, direta ou indiretamente a importantes autoridades apostólicas, à medida que as reinvindicações de continuação da tradição tornavam-se cada vez mais importantes.” [6]

Os quatro evangelhos constantes no Novo Testamento foram escritos por pessoas anônimas, não sabemos de fato quem os escreveu. Foram escritos por pessoas das diversas comunidades, em épocas e locais diferentes, refletindo a situação vivida por cada uma dessas comunidades.

Cada comunidade registrou a sua interpretação sobre Jesus. Os evangelhos não são biografias de Jesus. São interpretações das diferentes comunidades a respeito de Jesus. Isso explica porque cada evangelho apresenta a história de Jesus de forma própria, dando ênfases diferentes – podemos dizer que nos apresentam quatro Jesuses diferentes.

O mais correto seria dizermos: Evangelho segundo a comunidade de Marcos, Evangelho segundo a comunidade de Mateus e assim por diante.

Existe grande diferença entre se dizer “Evangelho de Marcos” e “Evangelho segundo Marcos”. Evangelho de Marcos indicaria uma autoria, isto é, o evangelho teria sido escrito por uma pessoa chamada Marcos. Já “Evangelho segundo Marcos” tem o significado de evangelho conforme, de acordo com Marcos, o que não indica um autor.

Como disse Crossan, os escritos que levam os nomes de Marcos, Mateus, Lucas e João foram atribuídos a eles, sem terem sido escritos por eles. Foi uma maneira da Igreja e suas autoridades darem aos textos chamados evangelhos uma maior autoridade, fidedignidade, credibilidade.

Vamos a seguir fornecer alguns dados sobre os evangelhos:

Evangelho atribuído a Mateus – Crossan nos informa que provavelmente esse evangelho foi escrito entre 85 e 90 d. C. possivelmente em Antioquia, capital da província romana da Síria.[7]

Diz ele que hoje em dia há um consenso entre os estudiosos de que Mateus usou Marcos como uma das duas maiores fontes na composição de seu evangelho.[8]

Isso se percebe quando se lê Mateus e Marcos em colunas paralelas. Aí pode-se perceber como Mateus omite, muda e acrescenta a sua fonte de Marcos. Percebemos como Mateus usou a sua criatividade para alterar o texto de Marcos, o que nos indica como naquele tempo havia uma liberdade muito grande por parte de um autor a usar um outro como sua fonte.

Koester também menciona Marcos como uma fonte para o evangelho segundo Mateus:

“Foi origináriamente escrito em grego a partir de duas fontes gregas, especificamente o Evangelho de Marcos grego e o Evangelho de Ditos Q grego.

A ênfase sobre a atividade milagreira de Jesus é amenizada em favor de seus ensinamentos, que o autor de Mateus apresenta essencialmente em cinco grandes discursos de Jesus.”[9]

Já Crossan apresenta uma outra característica importante do evangelho segundo Mateus:

“a terrível aspereza contra os rabinos farisaicos em todo o evangelho de Mateus mostra que os rabinos estão vencendo, que mais e mais judeus estão aceitando a visão do rabino para o futuro e não a de Mateus, e que a comunidade de Mateus está lenta, mas seguramente, sendo impelida para o judaísmo para sempre [...]  Na narrativa da paixão, onde Mateus está adicionando ou mudando sua fonte de Marcos, essas mudanças ou adições indicam amarga animosidade contra um judaísmo que recusou sua liderança.”[10]

Evangelho atribuído a Marcos 

O autor é de novo desconhecido, apesar da posterior atribuição a Marcos. Foi composto logo após a Primeira Guerra Romana, de 66 a 73-74 d.C.

Ele escreve para uma comunidade que sofreu severamente perseguição letal, e não apenas discriminação social ou oposição política. [11]

O Jesus de Marcos é penosamente humano.[12]

Hoje se sabe que o Evangelho segundo Marcos é o Evangelho mais antigo, foi o primeiro a ser escrito e é o mais próximo do Jesus “histórico”.

Os escritos de Marcos serviram de fonte para os Evangelhos segundo Mateus e Lucas.


Evangelho atribuído a Lucas – Atos dos

 Apóstolos  

O autor é mais uma vez anônimo e ele data do mesmo período do de Mateus – 85 – 90 d.C. e sua composição pode ser localizada em qualquer cidade grega do Império Romano, possivelmente até na própria Grécia. Originalmente o evangelho atribuído a Lucas e os Atos dos Apóstolos eram uma obra sequencial em dois volumes, assim divididos porque cada parte ocupava um pergaminho padrão.[13]

Evangelho atribuído a João 

Frequentemente chamado de Quarto Evangelho, é atribuído a João, em vez de escrito por ele.  É datado por volta de 90 d.C. e foi escrito em algum lugar da Ásia Menor à Síria.

Ao contrário do Jesus de Marcos, penosamente humano, o Jesus de João tem completo controle sobre o que lhe está acontecendo sendo serenamente transcendental.[14]


O QUE SÃO EVANGELHOS CANÔNICOS ?

Nessa categoria se enquadram somente quatro evangelhos cuja autoria são atribuídas a Mateus, Marcos, Lucas e João.

Isto significa que as autoridades da igreja cristã nascente reconheceram esses textos como autênticos, como inspirados por Deus e com autoridade de Escritura Sagrada assim como os demais que fazem parte do Novo Testamento.

Existiam muitos outros evangelhos (mais de cem) e escritos, atribuídos a outros personagens das primeiras comunidades cristãs, que a Igreja oficial não reconheceu como “inspirados”.


De que forma as autoridades da Igreja escolheram esses quatro evangelhos entre tantos outros que existiam como os evangelhos inspirados?


Juan Arias, escritor e jornalista, em sua obra “Jesus, esse grande desconhecido” nos conta como os evangelhos atribuídos a Marcos, Mateus, Lucas e João foram considerados canônicos ou oficiais.

“A história de como os quatro evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João foram escolhidos pela Igreja como autênticos e inspirados dentre os mais de cem que então existiam é muito interessante.

Um dos critérios da escolha foi o dos milagres. Segundo a Igreja, alguns dos prodígios feitos por Jesus nos evangelhos apócrifos eram pouco sérios ou muito fantasiosos.

Os quatro evangelhos foram escolhidos entre cerca de sessenta.  Por volta do ano 180 d.C, Irineu defende o “evangelho quadriforme” como necessidade teológica assim explicando:

§  O Evangelho é o pilar da Igreja. A Igreja está espalhada pelo mundo inteiro e o mundo tem quatro regiões. Convém, portanto, que existam quatro evangelhos.

§  O evangelho é o sopro do vento divino da vida para os homens, e, assim como existem quatro pontos cardeais, também devem existir quatro evangelhos.


§  O Verbo criador do Universo reina e brilha sobre os querubins, e os querubins têm quatro formas, por isso o Verbo obsequiou-nos com quatro evangelhos.[15]

Gerd Theissen nos apresenta mais uma justificativa de Irineu:

§  Assim como a história da salvação está desmembrada em quatro contratos de aliança – com Adão, Noé, Moisés e Jesus – assim também devem existir quatro evangelhos. Eles correspondem às quatro figuras celestes apresentadas no livro do Apocalipse, capítulo 4, versículo 7: João é o leão; Lucas, o touro; Mateus, o homem; Marcos, a águia.[16]

Arias, nos conta também na obra mencionada como ocorreu a decisão oficial sobre quais textos poderiam ser considerados inspirados.

 “A decisão oficial foi tomada no Concílio de Nicéia do ano 325, graças a um “milagre”: dentre todos os evangelhos que existiam, os quatro que conhecemos hoje como inspirados foram voando sozinhos até o altar.

Outra versão diz que colocaram todos os evangelhos existentes sobre o altar e os apócrifos foram caindo ao chão, só permanecendo os quatro escolhidos como autênticos.

Uma terceira versão conta que o Espírito Santo entrou no Concílio de Nicéia sob a forma de uma pomba através de uma janela sem quebrar o vidro. Lá estavam reunidos todos os bispos. A pomba pousou no ombro de cada bispo, dizendo-lhe ao ouvido em voz baixa quais eram os quatro evangelhos inspirados. E eram os de Marcos, Mateus, Lucas e João”[17].

Quanta imaginação não é mesmo? Espanta a credulidade que se pressupõe para que essas justificativas se sustentem!

Arias diz que

“por serem considerados canônicos ou oficiais pela Igreja, os livros do Novo Testamento gozaram durante séculos de credibilidade absoluta, sobretudo os quatro evangelhos, que eram tidos como biografias autorizadas de Jesus. Os textos foram considerados documentos históricos. Faz apenas dois séculos que começaram a ser vistos como textos literários sem pretensão de contar o que Jesus fez em sua vida terrena, porém, sobretudo e principalmente o que pensavam as primeiras comunidades cristãs sobre aquele profeta que pregava uma alternativa àquela sociedade rígida e fechada de seu tempo e apresentava um rosto mais paternal do Deus do Antigo Testamento”[18].


OS EVANGELHOS SINÓTICOS


“Evangelhos Sinóticos” é a designação para os três primeiros evangelhos do Novo Testamento, Mateus, Marcos e Lucas. Há muito tempo já se percebeu que esses três evangelhos apresentam materiais paralelos numa estrutura semelhante e com frequência na mesma seqüência de perícopes individuais. Há entre eles uma relação literária, um parentesco literário o que se constitui num fenômeno denominado “questão sinótica” que iremos abordar em outra postagem.

O nome “sinótico” foi dado aos escritos dos três primeiros evangelhos pelo pesquisador alemão J. J. Griesbach, em sua obra “Sinopse dos Evangelhos”, publicada em Halle, em 1776. Com efeito, Mateus, Marcos e Lucas tem semelhanças e diferenças, a ponto de se tornar possível imprimi-los em três colunas e com uma visão simultânea     (syn-hopsis) verificar as concordâncias e divergências.[19]

Dessa forma temos uma visão de conjunto dos três evangelhos, uma visão simultânea.


As discrepâncias entre os evangelhos sinóticos


Vale à pena relembrar o que Crossan diz a respeito das discrepâncias entre as diversas narrativas e versões. Elas

 não se devem apenas a falhas de memória, nem a diferenças de ênfase, mas também a interpretações teológicas conscientes a respeito de Jesus.”[20]

Os transmissores da tradição de Jesus tinham uma liberdade criativa que não dá para nós nos dias de hoje entender.

Mesmo quando Mateus e Lucas, por exemplo,  usam Marcos como uma fonte do que Jesus disse e fez,ou do que outras pessoas disseram e fizeram a Jesus, eles apresentam uma assustadora desenvoltura ao omitir, acrescentar, modificar, corrigir e criar certas passagens dentro de suas próprias narrativas – mas sempre, é claro, de acordo com a sua interpretação pessoal de Jesus.[21]

Crossan, em relação às discrepâncias que se encontram nas narrativas evangélicas coloca algo que merece nossa atenção e reflexão:

“Jesus deixou pensadores, e não memorizadores; discípulos e não recitadores; pessoas, e não papagaios.” [22]

Não devemos perder isso de vista quando estudamos o processo que se desencadeou após a morte de Jesus mais ou menos no ano 30 d. C através da transmissão oral até chegar à redação dos evangelhos a partir da década de 70.d.C.


O QUE SÃO OS EVANGELHOS APÓCRIFOS?


O nome “apócrifos” vem do grego significando “oculto”, “secreto”.

São esses outros escritos, que no momento de se decidir quais seriam considerados como textos canônicos ou oficiais, foram considerados pelas autoridades da Igreja como menos confiáveis que os outros. Os evangelhos apócrifos acabaram sendo considerados, injustamente falsos. Alguns são citados pelos primeiros Padres da Igreja, e ainda hoje continuam a ser estudados por não muitos biblicistas. A maior parte deles desapareceu e de alguns se conservam apenas fragmentos.

É evidente que estes evangelhos apócrifos também recolhiam as tradições orais das primeiras comunidades.

Koester aponta os grupos cristãos antigos que não reconheciam o cânon da Igreja Católica como os que criaram coleções de seus próprios escritos. A mais importante dessas é a Biblioteca de Nag Hammadi, descoberta em 1945-46 no Alto Egito, hoje publicada e traduzida em sua totalidade. Contém mais de cinquenta escritos entre eles o Evangelho de Tomé que será alvo de  outras postagens.

“Como um todo, os escritos dessa recém-descoberta Biblioteca são um recurso importante para uma nova compreensão da história do cristianismo primitivo e de sua literatura”.[23]

“Esses escritos são testemunhos importantes da história do cristianismo primitivo. Mesmo nos casos em que uma data relativamente tardia deva ser levada em conta, muitas vezes são incorporadas tradições cujas origens remontam aos primeiros momentos do cristianismo. Se a perspectiva teológica desses apócrifos se desvia da visão dos Padres da Igreja, ela pode muito bem fornecer esclarecimentos importantes sobre as percepções e práticas religiosas dos primeiros cristãos.”[24]

Frei Jacir de Freitas Faria na apresentação de sua obra “As origens apócrifas do cristianismo diz:

Jesus é um só, mas os escritos sobre ele são, por assim dizer, reflexos das várias maneiras pelas quais as comunidades o compreenderam. São experiências múltiplas e diferentes. Mas, de fato, uma se impôs como exata, tornando-se a oficial.”[25]

Ele se refere à experiência da Igreja Católica cujos Padres da Igreja canonizaram alguns textos tornando-os os únicos fidedignos e autênticos.

Prossegue ele ao final de sua apresentação da obra:

Uma das conclusões a que chega o estudo dos apócrifos é que estes precisam ser redescobertos pelas nossas comunidades, pois trazem dados preciosos sobre a origem de nossa fé.”

No período seguinte à morte de Jesus até a redação dos primeiros textos sobre ele surgiram muitas disputas teológicas em torno da pessoa de Jesus. Haviam diversas visões, diversas interpretações a respeito de quem fora Jesus e o sentido de sua missão.

Pode-se dizer que haviam vários cristianismos, isto é, várias maneiras de se interpretar Jesus. O cristianismo que acabou predominando foi o derivado dos apóstolos, o qual se tornou o cristianismo oficial, o canônico.

Alguns estudiosos consideram que os evangelhos apócrifos apresentam informações que são uma expressão da piedade popular sobre Jesus, que nada acrescentam às informações contidas nos evangelhos canônicos. Ao contrário acham que eles deturpam o sentido dessas informações.

Outros estudiosos acham que os textos apócrifos conservam dados importantes da memória popular sobre Jesus e seus seguidores.


Esses evangelhos são geralmente classificados em:

1-Narrativas da infância de Jesus
§  Proto Evangelho de Tiago
§  Evangelho de Tomé, o israelita
§  Livro da Infância do Salvador
§  A história de José, o carpinteiro
§  O evangelho árabe da infância
§  A história de José e Azenate
§  Evangelho Pseudo-Mateus da Infância

2-Narrativas da vida e da paixão de Jesus
  1. §  Evangelho de Filipe
  2. §  Evangelho de Pedro
  3. §  Evangelho de Nicodemos
  4. §  Evangelho dos Nazarenos
  5. §  Evangelho dos Hebreus
  6. §  Evangelho dos Ebionitas
  7. §  Evangelho de Gamaliel


3-Coleção de ditos de Jesus
  1. §  Evangelho de Tomé


4-Diálogos de Jesus
  1. §  Diálogo com o Salvador
  2. §  Evangelho de Bartolomeu



Existem vários desses evangelhos apócrifos que foram escritos por autores cristãos desconhecidos, não gnósticos, e que aparentam refletir um cristianismo popular marginal. A maior parte deles pretende suprir a falta de informação histórica nos evangelhos canônicos, fornecendo detalhes sobre a infância de Jesus, diálogos dele com os apóstolos, informações sobre Maria e demais personagens que aparecem nos evangelhos tradicionais.

Por exemplo, o Proto-Evangelho de Tiago, escrito no século II, que descreve o nascimento e a infância de Jesus e a juventude da Virgem Maria é tipicamente uma tentativa de satisfazer a curiosidade popular em torno de coisas não mencionadas nos evangelhos canônicos. Defende a virgindade perpétua de Maria.

“Com a chegada do método histórico-crítico passou-se a negar a autoria apostólica e a inspiração divina dos evangelhos canônicos. Os mesmos passaram a se vistos como produção da fé da igreja, sem valor real para a reconstrução do Jesus histórico. Dessa perspectiva, os evangelhos apócrifos chegaram a ser considerados como literatura tão válida como os canônicos para nos dar informações sobre o cristianismo nascente, embora não sobre o Jesus histórico.”[26]

Frei Jacir indica que “uma das conclusões a que chega o estudo dos apócrifos é que eles precisam ser redescobertos pelas nossas comunidades, pois trazem dados preciosos sobre a origem da fé cristã.” [27]



BIBLIOGRAFIA


1.  Theissen, Gerd – “O Novo Testamento” – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007; Volume 2

2.  Crossan, John Dominic – “Jesus, uma biografia revolucionária” – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995.  (Coleção Bereshit)

3.  Rodrigues, Maria Paula (org.) –“Palavra de Deus, palavra de gente: as formas literárias na Bíblia.- São Paulo: Paulus, 2004

4.  Crossan, John Dominic – “O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus” – São Paulo: Paulinas, 2004. (Coleção Repensar)

5.  Crossan, John Dominic – “Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus”, Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995. (Coleção Bereshit)

6.  Koester, Helmut – “Introdução ao Novo Testamento – Volume 2:história e literatura do cristianismo primitivo” – São Paulo: Paulus, 2005

7.  Arias, Juan – “Jesus, esse grande desconhecido” – Rio de Janeiro: Objetiva, 2001

8.  Theissen, Gerd – “A religião dos primeiros cristãos – uma teoria do cristianismo primitivo” – São Paulo: Paulinas, 2009 (Coleção Cultura Bíblica)

9.  Marconcini, Benito – “Os Evangelhos Sinóticos – Formação, redação e Teologia” – Paulinas: São Paulo, 2004

10.             Crossan, John Dominic – “O Jesus histórico – a vida de um judeu camponês do Mediterrâneo” – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994 (Coleção Bereshit)

11.             Fides Reformata XVII, Nº 1 (2012): 9:24

12.             Faria, Jacir de Freitas – “As origens apócrifas do cristianismo; comentário aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé” – São Paulo: Paulinas,2003. (Coleção Bíblia em comunidade)




[1] Theissen, Gerd – “O Novo Testamento” – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007;  Volume 2 – p.4
[2] Crossan, John Dominic – “Jesus, uma biografia revolucionária” – Rio de janeiro: Imago Ed., 1995 - p.14
[3] Rodrigues, Maria Paula (org.) –“Palavra de Deus, palavra de gente: as formas literárias na Bíblia .- São Paulo: Paulus, 2004 – p. 83
[4] Rodrigues, Maria Paula (org.) –“Palavra de Deus, palavra de gente: as formas literárias na Bíblia.  - São Paulo: Paulus, 2004 – p. 83
[5] Crossan, John Dominic – “O nascimento do cristianismo” – São Paulo: Paulinas, 2004 - Prefácio – p.17-18
[6] Crossan, John Dominic – “Quem matou Jesus?”, Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995 – p. 29
[7] Crossan, John Dominic – “Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus” – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995 -p. 30
[8] Crossan, John Dominic – “Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus” – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995. – p. 30
[9] Koester, Helmut – “Introdução ao Novo Testamento – Volume 2:história e literatura do cristianismo primitivo” – São Paulo: Paulus, 2005 – p.188
[10] Crossan, John Dominic – “Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus” – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995 -p. 31
[11] Idem -   p. 30
[12] Idem – p. 35
[13] Crossan, John Dominic – “Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus” – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995 Idem – p. 33
[14] Idem – p. 34-35
[15] Arias, Juan – “Jesus, esse grande desconhecido” – Rio de Janeiro: Objetiva,2001 – p. 34-35
[16] Theissen, Gerd – “A religião dos primeiros cristãos – uma teoria do cristianismo primitivo” – São Paulo: Paulinas, 2009. – p.359

[17] Arias, Juan – “Jesus, esse grande desconhecido” – Rio de Janeiro: Objetiva, 2001 – p.35
[18] Arias, Juan – “Jesus, esse grande desconhecido” – Rio de Janeiro: Objetiva,2001 – p. 36
[19] Marconcini, Benito – “Os Evangelhos Sinóticos – Formação, redação e Teologia” – Paulinas: São Paulo, 2004  - p. 10
[20] Crossan, John Dominic – “O Jesus histórico – a vida de um judeu camponês do Mediterrâneo” – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994 – p.30
[21]Idem – p. 30
[22] Crossan, John Dominic – “O Jesus histórico – a vida de um judeu camponês do Mediterrâneo” – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994 Idem – p. 30
[23] Koester, Helmut – “Introdução ao Novo Testamento, Volume 2 : História e literatura do cristianismo primitivo – São Paulo: Paulus, 2005 – p.14
[24]  Idem – p. 15-16
[25] Faria, Jacir de Freitas – “As origens apócrifas do cristianismo; comentário aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé” – São Paulo: Paulinas,2003 – p.6
[26] Fides Reformata XVII, Nº 1 (2012): 9-24 – p. 17
[27] Faria, Jacir de Freitas – “As origens apócrifas do cristianismo; comentário aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé” – São Paulo: Paulinas,2003- p.7